quarta-feira, 22 de setembro de 2010

SOBRE SAPOS E PRÍNCIPES

Todos já ouviram falar sobre aqueles contos, onde a princesa, solitária, beija um sapo que se transforma num príncipe aparentemente magnífico. Pura ficção, não nego. Mas o que ninguém sabe é que na vida real também existem histórias sobre sapos e príncipes... um pouquinho diferente das imaginárias, é claro!

Na vida real, princesa não é princesa. É sempre uma pessoa com baixa condição financeira, tentando encontrar sua alma gêmea, acreditando firmemente na idéia de que é possível viver de amor.

Príncipes jamais são príncipes: são homens de uma natureza desnecessária que, por trás das suas juras de amor, escondem um par de olhos responsáveis por uma pesquisa quantitativa sobre o sexo feminino. Na maioria das vezes não são bonitos, nem educados, nem elegantes... muito menos ricos!

As bruxas, simplesmente, sofreram alterações etimológicas. São ‘piriguetes’, às quais o roteirista concedeu somente um papel: irritar as princesas! Geralmente são muito iludidas em relação às próprias aparências, são audaciosas, acham que podem tudo e nunca ouviram falar na palavra respeito.

Fada? Madrinha? Só se for de casamento! Essa espécie é a sofredora, agüenta os desabafos amorosos e não possui nenhuma varinha mágica para transformar lágrimas em doses de bebida.

Na vida real, nada é o que os livros descrevem. Experimente beijar um sapo e sentirá um gosto horrível na boca, enquanto espera por um príncipe que não existe e jamais aparecerá. E esqueça a idéia de que as princesas desfrutam de regalias... em terra de gente, essas beldades desfrutam apenas de uma tonelada de motivos (que as obrigam implorar a deus por mais um pouco de paciência).

(Dalila Lemos)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

UMA VEZ, SEMPRE!

Hoje eu entendo, graças ao bordão do meu querido chefe e árbitro, Arnaldo César Coelho, por que optei por ser flamenguista. A REGRA É CLARA: muitas mulheres não se interessam por futebol.
Lógico que não posso generalizar, pois existem por aí umas fanáticas que choram quando o time perde, outras que compram briga quando falam mal de um jogador e até aquelas que sobem o meião e batem uma bolinha. Mas no meu meio é diferente: minhas amigas até riem de mim quando digo que vou assistir a um jogo do Flamengo. Algumas perguntam se faço isso por causa do meu namorado... e é nesse momento que eu agradeço pelo Bebeto não ter a mesma fama de antes.

Sim. As “Kaká-maníacas” que me perdoem, mas minha paixão por um jogador começou muito antes de 2001. Eu tinha quatro anos de idade quando assistia (obrigatoriamente) aos jogos do Vasco com minha babá. Apaixonada pelo Bebeto, ela dizia que não tinha time, apenas torcia pelo craque. Assim, a regra se tornava clara pela segunda vez e mostrava como as crianças são influenciadas pelos mais velhos.

Não demorou muito para que eu saísse enchendo o peito de orgulho e copiando frases da minha babá. Já me apresentava para os amiguinhos do colégio como ‘vascaína por causa do Bebeto’ e motivava alguns sorrisos adultos quando me perguntavam se eu trocaria de time caso o atacante mudasse de Clube. A resposta? Lógico que sim!

Três anos depois, meu ídolo foi jogar no Deportivo La Coruña. Sei que, de fato, já vestia outra camisa, mas sinceramente não tenho muitas lembranças dessa época. Eu era somente a garotinha que seguia o jogador.

Em 96, Bebeto jogava no Flamengo e eu já me apresentava com frases rubro negras. Aparentemente estava tudo bem e igual às outras ocasiões, a diferença só se fez presente quando o jogador largou o Clube.

Inédito! Pela primeira vez eu tentava convencer todo mundo de que havia enjoado de acompanhar um astro que mudava de time constantemente. Dizia que não era o fim da minha paixão, apenas uma escolha pessoal. Pode parecer estranho para uma garota de oito anos, mas meus argumentos eram exatamente esses.

Por fim, deixei de lado aquele fanatismo sem nexo e passei o restante dos anos gritando “Mengão”. Até que certa vez, numa tarde ensolarada de domingo, fui a um showbol em que o Bebeto estava jogando e a regra se fez clara pela terceira vez: a televisão ilude os telespectadores.

Eu estava diante do antigo colírio dos meus olhos que, atualmente definido por mim, não passava de uma pessoa baixinha e simpática. Confesso que dei risada, sozinha, durante alguns minutos e agradeci por nunca ter deixado o Flamengo.

(Dalila Lemos)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

SÍNDROME DE PETER PAN


A favor da experiência, resolvi pintar minhas unhas de verde fosforescente. Coisas de mulher: salão, tinta, espera (e haja espera!). A cada mão de esmalte um pensamento diferente estagnava em minha mente. Lembranças vieram à tona.

Quando eu era adolescente testava meus limites por opção. Além das inúmeras roupas, que hoje eu chamaria de figurino, tinha o costume de usar esmaltes coloridos, alternando uma cor em cada unha.

Era uma boa época, em que eu descobria minha personalidade com ajuda dos erros. Sentia-me livre e preparada para curtir a vida. Não que atualmente me sinta presa ou despreparada, mas o excesso de responsabilidades explica claramente essa diferença.

Não havia necessidade de trabalhar, a única obrigação era o estudo que, ainda assim, permanecia incomparável com os de hoje. O relacionamento com os meninos era diferente: a inocência somada à curiosidade resultava em consideração, um respeito pelo tempo. E assim amávamos, sem muita pressa nem muita disputa! Os criteriosos chamavam de bons momentos, os sonhadores denominavam paixão e os exagerados até hoje estão em dúvida entre a pior e a melhor coisa do mundo... pra mim eram as duas juntas.

O relógio preso na parede do salão adiantava o tempo lentamente, mas na minha mente o ponteiro andava em sentido anti-horário. Eu pensava nas tardes em que tomava banho de chuva, nos encontros do shopping, nas cartas das amigas, noites em claro, televisão ligada. Quanto mais menina me fazia a imaginação, mais o pensamento retrocedia nas épocas.

Foi quando voltei em outros anos. Lembrei da bola rolando ladeira abaixo, fazendo companhia para os pés descalços que brincavam de queimada, pulavam amarelinha e corriam no pique-pega. Pensei no meu pai e nos raros momentos que passávamos juntos pescando, fazendo pizza, acendendo fogueira ou apenas remendando um fio de eletrônicos. Na cabeça havia espaço para todos os momentos: desde o colégio, com merendeira na mão e maria-chiquinha no cabelo, até invenções que eram vendidas por mixaria nas ruas.

Encontrei em mim uma síndrome de Peter Pan. Sintomas que me admitem a enorme vontade de voltar e parar no tempo. Desejo de viver num mundo onde as pessoas bebem água da fonte da juventude.

Uma voz veio de longe, em um tom baixo, quase incompreensível. Era a manicure pronta para receber seu pagamento e atender a próxima cliente. Dei o dinheiro para ela, levantei e me despedi.

Já em casa, olhando aquelas unhas em tons de marca-texto, resolvi me libertar do calendário e me entregar para o mundo. Foram necessárias poucas idéias para que eu descobrisse que o bom da vida é viver, independente da idade, das responsabilidades ou pretensões. Busquei um vidro de acetona, tirei o esmalte verde, substituí pelo branco. E senti que pra mim pouca coisa tinha mudado.

(Dalila Lemos)

UM SONHO PRA TODOS


Pode ser que um dia você acorde com o sol batendo em seu rosto, abrindo seus olhos lentamente, tentando lhe mostrar o caminho correto. E enquanto anda por avenidas desconhecidas, hesitando entender o significado das placas, um vento traga o medo e leve seus princípios. É nesse momento que uma nuvem toma conta do céu, roubando as cores da sua manhã que já não é mais ensolarada.

Você poderia reverter toda essa situação se não fosse o medo de chamar o sol pedindo que ilumine a terra. Poderia decorar o céu se não houvesse o medo de transformar as nuvens em algodão doce. Conseguiria traduzir as placas se não existisse o medo de mudar sua direção. E até mesmo os traços, os pontos, as formas... ficariam coloridos se você não sentisse medo de errar os tons.

O mal de tudo é fechar a garganta e não enxergar que uma pergunta pode trazer, no máximo, um não como resposta. É trancar a gaveta e sentir temor de rever fotografias antigas. É reprimir vontades e deixar de fazer o que quer por receio de errar, mesmo sabendo que de erros são feitos os acertos. Sentir frio e apagar o fogo. Sentir saudade e desligar o telefone. Sentir fome e beber água.

Enquanto a TV te consome, pode ser que você durma com a chuva molhando seu corpo, lavando sua alma e te fazendo sonhar com um mundo onde as pessoas pedem, perguntam, tentam, fazem. Talvez assim, você acorde com vontade de gritar seu sonho para que todos sejam convidados e, ao invés de um não, ouvirá “sim” infinitos, ecoando por todo esse universo onde o medo é proibido e os dias mais agradáveis.

(Dalila Lemos)


PURA ESCASSEZ

O dia tem 24 horas. Tendo em vista o fato de que é necessário dormir pelo menos 8 horas, restam 16 horas para fazer uma infinidade de coisas como acordar, tomar banho, comer, escovar os dentes, pegar ônibus, ir pro trabalho, almoçar, pegar ônibus de novo, ouvir música, tomar banho novamente, assistir aula e, por fim, a mais importante delas: lembrar daquela sua professora de português da terceira série que encomendaria sua morte se visse as palavras “horas” e “tempo” sendo repetida tantas vezes.

Pelos motivos acima citados, proponho uma observação: o tempo que temos não costuma ser suficiente para que possamos fazer programas agradáveis como sair com os amigos, beber alguma coisa, colocar a conversa em dia, namorar e etc. Isso acarreta em noites mal dormidas, pois precisamos roubar algumas horas de sono para que o cotidiano não seja feito apenas de compromisso.

Como se não bastasse tanta afobação, ainda corremos o risco de perder alguns momentos preciosos com pessoas macambúzias que, de uma forma ou de outra, precisam manter o contato e a comunicação. Essa parte não é apenas cansativa como um tanto quanto estressante.

Não é justo falar em pessoas macambúzias sem citar uma outra espécie que requer cuidados específicos, como a dos ‘arrimos’. Em situações como essa penso até em ligar pra tal professora de português, mas olho para o relógio e decido explicar por aqui mesmo: arrimo é uma palavra usada gentilmente para substituir outra, que seria encosto. Sendo mais específica, diria que esse tipo de pessoa, ou melhor, esse tipo de palavra, agride o vocabulário de qualquer ser humano e mostra como há iniqüidade no mundo, já que somos obrigados a perder o pouco tempo que nos resta tentando não empregar essa palavra nas frases da nossa vida.

Frases por frases, diria que todas essas já escritas foram desenvolvidas com a finalidade de mostrar que não sobra tempo para nada, nem para os santos. Tomemos um exemplo: existe o São Longuinhos - que é o responsável pelos objetos desaparecidos, o São Pedro - que é responsável pela chuva, o Santo Expedito – responsável pelas causas impossíveis e mais um acervo de santos para um cúmulo de funções. Agora uma pergunta que não quer calar: você já ouviu falar em alguma santidade responsável pelo tempo? Não existe! O tempo não foi o suficiente para essa criação ou, no mínimo, as horas foram escassas para que pudessem divulgá-lo.

E não é só com os santos. A própria natureza, apressada, foi obrigada a inventar qualquer animal ao invés de três e nomeá-lo como ornitorrinco (um mamífero, com bico de pato e pêlo). A nossa língua pátria foi forçada a substituir a expressão “vós micê” por “você”, a fim de economizar um único segundo. As pessoas foram coagidas a viver sob a citação do “não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje”. Todos esses exemplos para ilustrar a falta de tempo habitual.

Por essas e outras (e muitas outras) que afirmo: os dias deveriam ter, no mínimo, 36 horas. Concorde quem quiser, afinal, pra mim, uma boa opinião é como tempo: pura escassez!

(Dalila Lemos)

PASSAGEM

A porta está aberta: o silêncio já pode entrar! Aqui não venta forte como lá fora e as gotas não vêm da chuva, são apenas lágrimas. É choro de criança que gosta de brincar de pique-esconde. São pingos na janela, nas cortinas, no chão. É coisa de gente nova ou velha...mas é coisa de gente. E gente que é gente tem seu espaço ao entrar por essa porta.

A tristeza precisa de companhia. Arrume as malas e traga a saudade, a fantasia, o delírio e o que mais couber na bagagem. Mas não demore, e por favor, venha calado. Assim o quarto fica cheio de segredos.

As chaves trancam e abrem os desejos. Os lençóis cobrem e descobrem o medo. A realidade se transforma num rabisco.E por mais que blasfemem, sempre há espaço para que o silêncio fique entre beijos e palavras.

É possível acordar sob as condições do relógio e, junto à pressa dos ponteiros, colocar um guarda-chuva na bolsa. Lá fora, quem mastiga o infinito faz seu próprio tempo e caminha em passos lentos para se divertir com a tempestade.

Sexo. Sonho. Súmula. Saliva. Meu céu é o inferno! Aqui dentro, sem saber pra onde vão os gostos, as noites, os dias. Sem saber de hoje, amanhã, de nada e nunca. Apenas ouvindo o vento. Insistente. Teimoso. Determinado. Tentando trancar a porta que eu sempre deixo aberta.

(Dalila Lemos)

POUSO DAS FADAS


Eram fadas.
Lindas, coloridas, mágicas!
Voavam sob as águas,
Cercavam as árvores.
Sumiam e apareciam abstratas.

Músicas e tons.
Ponteiro do relógio,
Parado. Ao contrário.
Mudavam o espaço
Contornando os traços
Fazendo estilhaços de uma realidade em vão.

  Eram fantasias.
Espelhos refletindo o planeta,
Sorriso de criança trancado na gaveta,
Era apenas imaginação.

(Dalila Lemos)


O VERBO NÃO TEM CULPA

Verbo: palavra que designa ação, estado, qualidade ou existência. Ou seja, uma expressão que (igual a tantas outras) é resultado de certa invenção. Admiro invenções que são boas o suficiente para que se obtenha êxito. Geralmente, cria-se muito e aproveita-se pouco. Essa é uma das razões pela qual respeito o verbo: ele é bastante aplicado.

           Basta conversar por telefone com um atendente de telemarketing para entender o descrito. Entre a propagação das palavras é possível formar frases seqüencialmente verbalizadas, do tipo “vamos estar precisando fazer” ou “você vai poder estar adquirindo”. Acredito firmemente que os cursos aplicados aos funcionários das centrais de atendimento são frutos de muita dedicação ao senhor Gerúndio.

          O seguinte motivo que cultiva minha idolatria é a percepção de que a todo segundo pessoas falam, sentem, comem, dormem, existem. Sem verbo, essas ações são infactíveis, pois ele mantém a vida em movimento. A agitação dos termos é intensa a ponto de confundir algum empregador, o qual envia e-mail substituindo a palavra veicular por um novo invento, denominado venciluar. Desta maneira, surgem outras e outras expressões que fazem com que o mundo nunca pare de ser conjugado.

        Um dos melhores atributos da língua portuguesa é, sem sombra de dúvida, o verbo querer. Considerando sua essência, é possível entender a utilidade do pretérito imperfeito – um tempo verbal que existe exclusivamente para que o ser humano arquive com segurança seu passado defeituoso.
Definitivamente, ninguém compreende que sentir vontade no pretérito imperfeito não é tão simples quanto parece. Semelhante a um combo, o querer vem sempre acompanhado de uma série de motivos que afetam o poder. Basta falar queria somente uma vez para ouvir alguém perguntar se você já não quer mais. Por isso afirmo impiedosamente que, entre todos os tempos e verbos, esses são os mais incertos.

        Para compensar tamanha improbabilidade e um possível desapontamento, existe uma expressão visual e sonora, denominada riso, que é inexplicavelmente inserida no presente. Dizer eu rio é tão inspirador e contagioso quanto à risada em si, pois, enquanto alguém avalia essa palavra, instantaneamente pensa em um flúmen, córrego ou qualquer outra extensão que contenha água.  Desta maneira, o verbo simplesmente justifica o comentário de quem afirma “rir litros”.
           
        E não pára por aí! O mundo pode ter mudado simultaneamente com a forma do pensamento humano, mas relacionamento aberto ainda é assunto que gera bastante discussão. Portanto, é preciso mais do que nunca, considerar a generosidade do verbo ao sustentar os pronomes e seus casos.
        
       Para finalizar (se é que cabe a mim essa decisão tão ajuizada), sinto necessidade de defender a maior de todas suas qualidades: o verbo é um funcionário tão paciente que atura as importunações vindas de quase todos seus empregos. As pessoas preferem julga-lo a conjuga-lo e dizem por aí que descendente de português não merece muita afeição.
           
       Eu não concordo com essa ladainha. Enquanto meus ouvidos escutam alguém falar que “deveria ter trago algo a mais” (como se trazer fosse marca de cigarro) ou meus olhos observam indivíduos pegando o futuro do pretérito com m no final, apenas uma frase passa em minha cabeça: O VERBO NÃO TEM CULPA!

(Dalila Lemos)

O PESO DE VIVER

Momentos de luta na academia. A personal trainer recomendou que não controlasse o peso em uma balança diferente a cada dia. Disse apenas que haveria distinção entre uma ou outra, mas não conseguiu ser mais precisa.

No dia em que necessitei ir ao médico, o doutor quis me pesar. Eu consenti, mas fui obrigada a pedir que não me falasse, apenas anotasse o peso. Dessa forma, sem hesitar, ele atendeu meu pedido.

A caminho de casa uma curiosidade me consumia. Tinha o desejo de retornar ao consultório e ler fixamente quantos quilos foram anotados à caneta naquela ficha abominável. Mas não o fiz. E com passos lentos concluí minha caminhada.

O início da manhã seguinte se resumiu a uma corrida intensa que durou 60 minutos. Exausta, selecionei no celular algumas músicas calmas para ouvir enquanto o ônibus me conduzia até a cidade onde trabalho. Fugindo do habitual, não consegui adormecer. Pensava apenas na agenda lotada de compromissos e nas horas estressantes que viriam ao meu encontro.

Funcionários chegavam e saíam. Eu permanecia entre o ‘bom dia’ e o ‘boa tarde’ de alguns. Temia que o tempo não fosse suficiente para cumprir todas as obrigações... e temia com motivo, pois minha curiosidade só aumentou quando descobri que os instrumentos de medição de massa devem ser regulamentados e fiscalizados pelo INMETRO, constituindo ato passível de punição no caso da não-homologação.

Depois dessa, o circo estava armado: pisei em um objeto de uso comercial e em outro de uso biomédico sem ao menos saber qual deles foi fiscalizado, tampouco a maldita diferença entre ambos. Precisava informar minha personal trainer com urgência! E quanto mais pensava nisso, mais tarefas surgiam.

Logo percebi que a academia ficaria para outro dia. Havia excedido meu horário e eu ainda tinha muito que fazer. Quando por fim me adaptei a esse fato, consegui concluir todo o serviço e decidi comer alguma coisa enquanto a condução não chegava. Cansada de barulho e agitação, fui ao refeitório apenas comprar um amendoim e procurei companhia para comê-lo ao ar livre.

Já estava escurecendo... não simplesmente, mas de uma forma mágica. O céu parecia uma paleta de cores que tingia as montanhas, as nuvens estavam baixas, a primeira estrela que surgiu era coincidentemente a que mais brilhava. “- Tem gente que não se importa, não entende a essência da natureza”: foi o que ouvi.

Olhando a cidade por cima, finalmente encontrei a resposta: a diferença entre uma balança e outra é questão de opção. Há quem escolha pesar o corpo, outros, a alma. Eu escolhi pesar a vida, pois às vezes é preciso contar estrelas com um amigo, contar segredos, guardar silêncio. É preciso se aproximar mais da simplicidade e valorizar os momentos que te façam ir embora apenas com um sorriso no rosto e alguns quilos de felicidade.

(Dalila Lemos)

MERAS INVENÇÕES

As pessoas inventam coisas. Certamente relevantes, casuais, absurdas ou até assustadoras! Empregadores inventam estratégias para elevar as vendas em datas sazonais. Empregados inventam conceitos mirabolantes para trabalhar menos que o esperado e clientes inventam um modo de exterminar as invenções de ambos.

Foi no balcão de uma loja lotada que me dei conta dessa descoberta: eu era a cliente exterminadora que não enchia os olhos do patrão e ainda tomava o tempo da funcionária. Estava ali com o único propósito de comprar um presente.

Entre olhar uma peça ou outra de roupa, escolhi a terceira opção: implorar aos deuses para que toda propaganda verde e amarela não tingisse meu cérebro com as cores do Brasil. Mas inventaram a Copa... e se não fosse certa repulsa por ambientes superlotados, compraria uma camisa oficial da seleção (e não aquele moletom flanelado).

Acreditei ter desperdiçado a oportunidade rara de comprar um presente para o dia dos namorados que também fosse útil aos dias de jogos. Pensamento até bem comum, característico dessa era convergente que inventaram.

Embrulhei minhas idéias e entrei no ônibus. Amassei minhas idéias e desci do ônibus. Fui pra casa apressada e, quando cheguei, escolhi um lugar simplório para guardar o embrulho.

Normalmente, eu ouviria o soar da campainha... mas inventaram o celular! O toque em MP3 substituiu o verbo chegar, na primeira pessoa do singular, no modo indicativo e tempo presente. Coloquialmente resumindo: a única pessoa que eu esperava já estava em minha casa e tudo indicava que a hora de entregar o que comprei era aquela.

Escutei-o dizer que a escolha foi boa: senti necessidade de explicar por que desisti de comprar a camisa do Brasil. Escutei-o dizer que trocaria o outro presente: senti obrigação de perguntar o motivo. Então, escutei-o dizer que não torcia pela seleção brasileira e imaginei que aquela frase fosse uma invenção.

Após alguns dias, nosso país se transformou em futebol. Observei o comércio com as portas fechadas, ouvi sobre outros países que, até então, estavam aprisionados nos livros de história. Sem contar que me vi cercada por objetos de nomes obtusos, tipo a vuvuzela, que aparentemente, existem apenas de quatro em quatro anos.

Bastaram alguns segundos para que todo verde e amarelo se congelasse numa imagem. Entre as cores da torcida, lá estava ele: vestindo uma camisa laranja da Holanda, gritando ‘Flamengooo’ e ansiando um gol do time adversário. Naquele momento pensei: “inventaram meu namorado!”.

(Dalila Lemos)

LUA TORTA

O celular tocou e o olho voltou-se para o céu. Lá estava ela: cheia, linda, amarelada e completamente torta. Parecia massa de modelar nas mãos de uma criança, ou quem sabe, uma ferramenta elipse distorcida por algum viciado em Corel Draw. Mas de fato era a lua e, de fato, estava torta.

O horóscopo do dia anterior falara sobre uma crise astrológica. A voz que se ouvia no aparelho móvel foi substituída por uma hipótese: a nuvem havia provocado toda essa confusão. O difícil seria convencer as pessoas de tal façanha... tão complicado que, pela rua, já reinava o comentário de uma moça: “nossa, a lua está torta! Que coisa mais estranha!”.

Em algumas horas corridas o único satélite natural da terra perderia a vez para o sol. Alguma providência deveria ser tomada enquanto noite. Mas não havia o que fazer. E para completar, aquele fenômeno tornou-se tão hipnótico que o ouvido já não escutava a voz na linha telefônica. Seria impossível substituir a visão pela fala.

Subitamente, o olhar descobriu algo imprescindível que nada tinha a ver com os astros. Havia alguém na janela do último andar de um prédio que ficava, exatamente, abaixo daquele pedaço de céu. Uma das mãos segurava um celular, a outra se mantinha apoiada no pára-peito.
Iluminada por reflexos distorcidos, a cidade parecia o que não era há muitos anos. Se passavam carros buzinando sem pretexto ou casais discutindo sem motivo, já não fazia a menor diferença. Aquela voz calma não vinha apenas da linha telefônica e, sim, do décimo andar do edifício.

Esperou batimentos cardíacos acelerados. Não houve êxito... nem para um provável nervosismo, nem para o esperado medo ou outra coisa qualquer. Tudo se resumia na curiosidade e no anseio de descobrir o porquê de tanta diferença. Havia um desejo eloqüente de saber se a culpa era mesmo da nuvem e não do tempo, já que esse foi capaz de mudar até a forma de sentir.

Abandonou a imprecisão e observou o céu movendo-se lentamente. Aquela bola era mais certa que qualquer certeza! Então decidiu ouvir a voz no telefone pela última vez e, usando três letras, negou a saudade em troca de uma lua torta.

(Dalila Lemos)

IRRITANTEMENTE VERDE

Coisa irritante no mundo é não ter tempo para escrever um texto e, ao faze-lo, ver algumas de suas frases sublinhadas do início ao fim.

Certa vez um amigo me disse que o Microsoft Word é um programa idiota. Eu contra-argumentei, dizendo que o importante pra mim era a praticidade. Sinceramente, abriria mão do meu comentário se naquele momento sentisse a mesma raiva de ontem.

Escrevia um texto para outra coluna quando um trecho foi sublinhado. Geralmente, quando acontece isso, é sinal de que alguma coisa está errada. Mas a sublinha não era vermelha, daquelas que indicam perigo ou tentam te dizer “sua acéfala, não é assim que escreve essa palavra ridícula!”. Tratava-se de um sublinhado verde, cor fria e calma, que poderia representar tudo menos uma incoerência.

A seguinte frase foi premiada: O relacionamento com os meninos era diferente. O Word grifou desde o começo até a palavra diferente. E digo mais: aqui pra mim continua grifado. Tudo bem, seria muito exigir que programas de computador fossem inteiramente inteligentes ou eficazes, entretanto, o que me tirou do sério foi sua intervenção.

Todos nós sabemos que basta clicar com o botão direito do mouse em cima do problema que imediatamente as soluções aparecem. No meu caso não. Eu já sabia que a concordância estava certa, me lembrei até de algumas perguntinhas estúpidas que a professora ensinou a fazer antes de empregar o verbo. Mas quis ser humilde e tentei utilizar a técnica do botão direito. Duas opções apareceram pra mim: sendo a primeira sem sugestões e a segunda, ignorar sentença.

Refleti sobre a primeira opção. Pra mim, o ocorrido foi episódio irrefutável. Pensei em uma reunião no departamento de criação de uma agência de publicidade, onde o objetivo era colher idéias para a criação de um anúncio. Durante a reunião, a secretária que chega para servir cafezinho escuta uma das idéias e diz em alto e bom tom: “- não gostei disso, não”. Espantado, o chefe da agência pergunta para a secretária: “- você sugere algum outro conceito?”. E ela responde “- de forma alguma”. Foi exatamente isso que o Word fez.

Considerei a segunda opção, que me parecia justa, afinal, ignorar sentença significaria fingir que aquele sublinhado verde jamais existiu. Me enganei novamente e a alegria durou apenas alguns segundos, pois tive que iniciar um outro parágrafo e tudo voltou a ser como antes.

Cheguei a uma conclusão que supera a opinião do meu amigo: o Word se assemelha àquelas pessoas audaciosas, que se sentem donas da verdade. E ai de quem pense em discutir!

(Dalila Lemos)

INTERFONE SEM FIO

- Sabe da última?

- Não.

- Quer que eu te conte?

- Você quem sabe.

- É. Eu que sei mesmo. Você que ainda não sabe.

- É. Não sei.

- E quer saber?

- Se você quiser contar...

- Assim fica difícil. Ou você quer ou você não quer.

- Tudo bem. Conta logo, vai!

- Ele está tomando remédio de “faixa” preta. Dizem por aí que ficou meio maluco por causa dela. O vizinho do 101 disse que a medicação não tem adiantado. Sabe como é né...

- Não. Não sei.

- Tudo bem. Não precisa insistir. Eu conto! O porteiro disse que ele pegou o maior flagra.

- E ela?

- Ta tomando remédio de “faixa” vermelha. Dizem por aí que esse é o mais apropriado.

- Dizem por aí... quem?

- O vizinho do 203. Comentou que na família há muitos casos de dependência registrados. Eu fui boba por não ouvir a faxineira do salão de festas.

- A faxineira?

- Sim. A faxineira falou que ela é dependente. Não dei muita idéia, mas, se parar pra pensar, faz sentido. Ela dependia dele pra tudo.

- E o outro?

- Toma remédio não. Só cachaça. O vizinho do 302 disse que ele é adepto às pingas medicinais. E sabe de mais?

- Quem? O outro?

- Não. Você.

- Sei sim.

- Sabe.

- Sei. Você que não sabe.
- O que eu não sei?

- A diferença entre os remédios de “faixa” preta e “faixa” vermelha.

- E qual é?

- Depende da luta.

- Quem te contou?

- O vizinho do 401. Disse que loucos são os que afirmam por aí que o certo não é “faixa” e sim “tarja”.

- Mas por que ele disse isso?

- Porque ouviu o vizinho do 503 dizer que tomava os dois tipos de remédio, pois a vida dele era uma luta.

- E você acreditou?

- Acreditei.

- Por qual motivo?

- Porque o vizinho do 504 se intrometeu na conversa e falou que eu não deveria considerar a opinião de quem mora quatro andares acima de mim.

- Mas você considerou!!!

- Considerei porque ele me fez chamar o vizinho do 103, que é ex-lutador de jiu-jitsu e atual professor de karatê. Além de, também, tomar os dois tipos de remédio e afirmar que “tarja” é uma censura.

- Era bonito?

- Muito.

- Forte?

- Do jeito ideal.

- E por que você não interfonou pra ele mais vezes?

- Porque a vizinha do 604 disse que ele só tomava o remédio “faixa” vermelha, mas a “faixa” preta passou a fazer parte da sua rotina quando se assumiu gay.

- Olho grande o dela.

- Não entendi.

- É vascaína. Ele não: é flamenguista doente. A vizinha do 601 disse que, em dias de jogos, bola no pé dele é gol de placa.

- Tive uma idéia.

- Qual? Marcar uma pelada e chamar o bonitão?

- Não. Convida-lo para tomar um sorvete. Acho melhor que tomar remédio.

- Só te aconselho a não ir à sorveteria da esquina.

- Por que isso?

- O vizinho do 703 esteve lá e disse que o sorvete não é consistente.

- Quer saber de uma coisa?

- Bem que eu gostaria, mas não temos mais vizinhos para isso... todos já foram citados.
- E agora?

- O jeito é esperar. O porteiro disse que uma moça vai se mudar para o 702 na semana que vem.

(Dalila Lemos)

EXTRA! EXTRA! EXTRA!

HORÓSCOPO DA ESCORPIANA DALILA LEMOS ERRA AS PREVISÕES PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA!

Barra Mansa, 9 de Abril de 2010:

O horóscopo do Portal Rio Sul Net, responsável pelas previsões da jornalista Dalila Lemos, propagou nesta sexta-feira falsas informações afirmando que a escorpiana estaria num momento reservado, vivenciando algum tipo de nostalgia ou somente precisando se afastar das agitações. Indignada, Dalila iniciou judicialmente um pedido de resposta, alegando em síntese uma conduta desvirtuada da astrologia: "Considero um absurdo os astros se manifestarem individualmente cegos, sem enxergarem o quão comprometedora é uma sexta-feira ensolarada", disse Dalila Lemos.

      O advogado da jornalista, senhor Capiroto Coisa Ruim da Besta, afirmou a possibilidade de indeferimento do juíz em relação ao direito de resposta: "Creio que o pedido da minha cliente seja negado em prol da ignorância do juiz, senhor Jesus de Nazaré, que todos os dias lamenta erros drásticos (como o do horóscopo) alegando que, visivelmente, isso não aconteceria caso a humanidade entendesse que a natureza necessita de cuidados por ser a principal responsável pelo comportamento dos astros". Em nota, a escorpiana expõe um comportamento rebelde, afirmando que nem a decisão do Juíz tampouco as falsas informações propagadas pelo horóscopo a impedirão de sair de casa: "Se o mundo quer fazer justiça, não há nada mais justo que eu encontrar meus amigos na sexta-feira e tomar uma cerveja. Se estivesse ao meu alcance o uso da linguagem vulgar, diria que vou tudo e di cum força", concluiu Dalila.

(Dalila Lemos)

EXPLODINDO O MUNDO

Ela já acorda perdendo a vez pro uso incorreto dos 10 minutos que restam. O celular desperta e, ainda muito insistente, afirma que não quer ir embora. Para quem não sabe, o silêncio também fala. Sem opção, levanta da cama e põe os pés sobre o asfalto.

 A plataforma 1 é quase uma novela. Há dias em que os passageiros até mudam de cor devido a tanta espera. Quando a condução chega, é hora da atuação. Já viu deficiente físico correr, gordinha murchar a barriga, mulher esbelta ajeitar o decote... tudo que possa chamar atenção do motorista para que ele pare num ponto estratégico. Parece incrível, mas esse “ponto g” é sempre o mesmo: o lugar em que ela fica parada.

Uma hora de viagem, alguns quilômetros de caminhada. Chega ao trabalho, olha a lista de afazeres e toma um café enquanto pensa por onde começar. Se um mau começo é o fim, significa que ela sempre inicia bem, pois o final nunca se aproxima.

Esses dias mesmo comparou a situação com alguns filmes de terror. Quando o telespectador pensa que o Halloween VI é o último, incluem mais cinco na seqüência. Não satisfeitos em saber o que vocês fizeram no verão passado, sentem-se honrados por continuar sabendo e ainda se orgulham de tamanha memória dizendo que sempre saberão. É tudo tão aterrorizante que uma só não basta: é preciso sentir pânico quatro vezes.

Ela acelera a eficiência. Mas o telefone toca, o celular vibra, o ramal chama, o e-mail chega, as pessoas surgem. De vez em quando a chuva cai e, ironicamente, ajuda ainda mais.

Para encerrar o expediente é preciso passar óleo de peroba no rosto e ter cara de pau para pedir que a carona espere mais uns cinco minutinhos (que acabam se transformando em quinze).
Come amendoim enquanto volta pra casa, porque dizem que ajuda a controlar o sono. Ela ainda quer se encontrar com alguém, mesmo sem ter aproveitado a oportunidade de falar sobre essa vontade.

Andando pela casa, descobre suas amizades: os bichos de pelúcia, as fotos, tintas de cabelo, a interferência da televisão... quem sabe ainda aquelas formiguinhas que roubam o farelo do bolo ou até mesmo as bactérias grudadas naquele microscópio da década de oitenta que sua irmã guarda até hoje. Diria que os deuses poderiam ser amigos seus, mas o tempo? Absolutamente não!

    Ela percebe que já é tarde e não haverá com quem compartilhar o cansaço dessa vez. Não perde manias, apenas a tranqüilidade. Então, certamente frustrada, lava o rosto pra remover toda maquiagem. Guarda seu cachecol, suas jóias. Tira o salto de dez centímetros que tanto espreme seus pés e aquela lingerie que nem os gênios explicam o por que de tantos detalhes. Toma um banho sem pressa e se envolve no edredom igual a um rolinho primavera.

Precisava dormir, mas algo a incomodava. Não era fúria, impaciência nem descontentamento. Então, foi preciso forçar as pálpebras e manter os olhos abertos. Pegar um papel, uma caneta e escrever um segredo: não havia a intenção de explodir o mundo... ela só queria colo.

(Dalila Lemos)

ESCRITO À MÃO

Bastou apenas sentir vontade de me sentar numa varanda, encontrar uns amigos e beber alguma coisa para entender os fatos. O relógio marcava 11h44 e eu já me tornava vítima de uma consideração: nem tudo depende de desejos.

Já que a mim não cabia utilizar o teclado de um computador para fazer com que as letras virassem frases, decidi praticar algo então esquecido. Para isso eu precisava furtar um lápis na mesa situada em frente à minha e incluir idéias quaisquer no papel que, visivelmente, estava tão vazio quanto a imaginação.

Duas ou três palavras foram suficientes para que o tempo avançasse descontrolado e o ponteiro marcasse a hora do almoço. Eu ainda não sabia o que fazer com aquela folha branca e lápis recentemente apontado por um estilete. Então decidi sair para almoçar, pois não me ajudariam a correria e o barulho do sapato alto pisando no local onde eu me mantinha quieta.

E foi na hesitação da rua, longe da ansiedade escondida em cada atualização de página da web, que descobri motivos para preencher o vazio misturado à minha bagunça. Eu poderia transformar qualquer fato em prosa ou verso: uma fofoca do dia, um rasgão na calça, um moço bonito... até mesmo um mendigo repudiado por outrem seria desigualmente analisado e desvendado em frases.

Era mais simples que reaprender a andar de bicicleta. E tornou-se cada vez mais agradável deslizar a grafite pelos claros da folha. Naquele momento eu consegui me enxergar como há muito não fazia e descobri que em mim, além de desejos utópicos, existia algo de muito valor: um papel escrito à mão.

(Dalila Lemos)

ERA UMA VEZ...

Dia desses, há uns dez (se não me engano), descobri algo acentuado. Digo acentuado por fazer parte de um episódio relevante, mas, peculiar também seria uma boa definição. Na verdade, foram várias descobertas e não apenas uma.

A primeira delas está escondida na penumbra que envolve o término da madrugada e o início da manhã. Seis horas tornou-se um horário altamente ameaçador! Tantas ruas desertas, alguns bandoleiros vagando e o perigo longe disso: encontrava-se justamente no comportamento das pessoas e na maneira como elas lidavam com esse horário.

Foi inacreditável avistar um senhor em sua bicicleta, se abstendo de utilizar ambas as mãos, empurrando os pedais com ânimo nos pés e declamando o Rebolation com gritos ensurdecedores. Eu, instantaneamente pensei: “meu Deus, o que está acontecendo com os cidadãos? Se é que podemos chamá-los assim...”. Fixei meus olhos no relógio e discorri: “deve ser o horário... dizem que o sono afeta a conduta alheia”.

A segunda descoberta foi, praticamente, um complemento para a anterior e se fez presente no momento em que, logo após saborear um prato de comida, retornei ao trabalho e ouvi alguém cantarolar o Meteoro da Paixão. Tal acontecimento foi o suficiente para eu concluir que o problema não estava contido apenas no início do dia e sim nessa nova temporada em que vivemos.

Era uma vez a época em que rebolation se limitava a alguma brincadeira, onde a mistura do português com o inglês formava palavras sem nexo. Meteoro não passava de um fenômeno luminoso, também conhecido como estrela cadente, que jamais explodiu qualquer sentimento. Além do mais, não existia banda de forró com nome de biscoito de chocolate, cantor com nome de salada, tampouco algum grupo de pagode adversário de produtos eletrônicos.

A terceira descoberta estava refreada no anseio de dividir esse desprestígio reflexível com o primeiro que aparecesse. Eis que meu desejo foi entornado, por inteiro, nos trezentos decibéis propagados por um automóvel de cor preta. Eu não estava ficando louca, estava apenas ouvindo uma composição sonora designada Vale Night.

Aquela circunstância despertou em mim a maior ambição de todas que já tive e senti necessidade de avistar um carro, daqueles bem caro e equipado, estrondando um som do Chico Buarque. Mais que isso... eu queria entrar de penetra num churrasco que estivesse tocando Toquinho ou numa festa de tributo aos Beatles. Adoraria se no camarote VIP de alguma boate tocasse BB King, Tom Jobim no Happy Days das rádios e nas micaretas eu pudesse ouvir Noel Rosa.

Pretensões quase tão impossíveis quanto um milagre capaz de devolver a cultura ao mundo. E eu estava certa de que haveriam alienados o suficiente para se opor a cada fração do meu pensamento. O que me fez seguir em frente com as palavras não foi apenas o fato de saber que há tanta droga no mundo, mas também a vontade de entender por que as pessoas se permitem digeri-las e ainda pensar que quero dividir com elas.

(Dalila Lemos)

EM PEDAÇOS

Não me mastigue em pedaços. Meu veneno é utópico! É doce e amargo. É desvairado, enérgico, intenso.

Sou apenas uma insinuação para sonhos que me acordam, tombos que me levantam, erros que me acertam.

Não sou um corpo em carne, osso, curvas e delírios... mas um vício que corre nas veias, lento e ativo.

Passo manhãs delineando a saudade e noites contornando os sorrisos. E no extremo dos dias sinto a sensação de liberdade que discursos insignificantes não tiram de mim.

Posso substituir impaciência por distância, pessoas por coisas, sentimentos por prazeres. Não tenho compaixão com o tempo: sou infinita, ilimitada.

Transformo quem me convém em número, enquanto minha paixão é a palavra.

Gosto da complexidade só por experimento, do sabor só por acaso, do muito por pouco. O meu antídoto é a existência e meu pecado, o exagero.

(Dalila Lemos)

DESCOBERTAS

Um dia pretendo descobrir o que é mais cansativo: o desgaste físico ou o emocional. Almejo desvendar o mistério do veneno contido na fala, nas frases de quem não aprecia as palavras, nas letras que oscilam pelos ares. E pretendo agradecer por essa toxina ser ineficaz quando misturada a venenos delirantes.

Quando acordo, a cidade ainda dorme. Vejo o céu clareando aos poucos, o sol nascendo para iluminar mais um dia. Sinto o cheiro de café vindo da padaria e da terra molhada nos jardins. Às vezes me deparo com mães levando seus filhos ao colégio ou algum servente cumprindo sua função diária. Não sei, mas acho que a mistura de tudo isso somada à brisa leve que bate e arrepia meu corpo faz com que eu me sinta feliz por ser amante da simplicidade.

Enquanto observo as folhas de outono caídas ao chão, deixo em meu rosto um sorriso exultante. Mas sinto que ainda há algo errado... e o erro não é meu: é de quem acorda reclamando por levantar cedo, por não ganhar o salário que gostaria, por odiar dias quentes e não ter aproveitado todos os momentos por medo. O erro é DOS outros, o inferno são OS outros. Nesse inferno, o que eu gostaria mesmo era ter a opção de fazer com que toda energia negativa fosse embora, permitindo que cada coisa voltasse ao seu lugar: as palavras nas frases certas, as letras nas palavras, o som nas letras...

Então eu começaria de novo, já sabendo que o desgaste físico é menos cansativo e mais agradável que o emocional. Agradeceria pelas pernas que me movimentam e pelas descobertas em cada passo. O mesmo sol, cheiro de café, terra molhada, mães com filhos, servente, brisa e arrepio... a diferença estaria nos outros, que já não seriam um erro e sim um complemento para meu sorriso exultante.

(Dalila Lemos)

CORES E TRAÇOS


Ilustre os passos das palavras em vão.
Apague o veneno,
Acorde a cidade,
Crie a vida pela imaginação.

Modifique o espaço
Deixe inteira a metade
O que faz lembrar saudade
Também enfeita um não

Cores e traços num inferno de erros
Sol, terra, folhas de outono ao chão
Pinte um mundo de verdade:
Cores nos sorrisos
Traços na ilusão

(Dalila Lemos)

AMOR EM VERSO

Além de diplomata, jornalista, compositor e poeta, Vinicius de Moraes foi um marido nônuplo. Casou-se nove vezes nas entrelinhas de suas frases. Com certeza disse a todas esposas que amava, e amava exageradamente.

O fato é que uma só pessoa não ocupa todo o sonho de uma poesia. Somos indivíduos, estamos ligados à individualidade e ao individualismo. Somos únicos e diferentes uns dos outros. Isso significa que é possível encontrar no outro o que falta em nós mesmos, e vice-versa. E vice. E verso.

Nos complementamos em todos os sentidos. Algo como uma equipe de super-heróis, onde cada um tem um poder diferente. Heróis que sozinhos não conseguem cumprir suas missões, mas juntos se surpreendem a cada desafio.

É simples sentirmos vontade de nos esquentarmos debaixo de sol ou nos resfriarmos com a chuva. O difícil é ter ambos os desejos ao mesmo momento, pois dependeríamos da natureza e não apenas de nossas pretensões.

Assim são os relacionamentos: os anteriores diferentes dos atuais, os atuais diferentes dos posteriores. Todos exclusivos, singulares e particulares devido à individualidade que nos torna desiguais. Se percebêssemos isso, entenderíamos com mais saber por que deixamos algumas pessoas e por que outras nos deixam.

De toda essa disparidade é feito o poeta. Bastaria amar apenas uma vez ou uma só pessoa na vida, para que Vinícius de Moraes respirasse prosa ao invés de poesia. Contentaria qualquer paixão eterna ao invés da pergunta “quem pagará o enterro e as flores se eu morrer de amores?”.

(Dalila Lemos)