Não se faz mais canções como antigamente! Posso dizer isso ao ouvir "O bêbado e a equilibrista" - uma composição de João Bosco. Perfeição é a palavra que descreve a interpretação de Elis Regina e genial é o adjetivo que escolho para a letra da música. Vejam só:
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de a...lu...guel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Prá noite do Bra...sil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram marias e clarisses no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A espe...rança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se ma...chu...car
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
tem que continuar
O bêbado representa os artistas que resistiam ao Governo e lutavam pela liberdade. A equilibrista ilustra a esperança de democracia contida num projeto de abertura política gradual.
Na década de 70, um viaduto de Belo Horizonte desabou sobre carros e ônibus. Várias pessoas morreram e nada foi noticiado. A primeira frase da música esclarece tal acontecimento.
O luto está associado ao desaparecimento de militantes de esquerda, assassinados sob tortura. Carlitos é o personagem mais famoso de Charlies Chaplin: um andarilho, sem dinheiro no bolso, que veste um paletó apertado, usa chapéu-coco e bengala.
Mata-borrão é um objeto utilizado para absorver o excesso de tinta do texto escrito com pena ou caneta tinteiro. No contexto, significa um meio de neutralizar as manchas da tortura.
Henfil foi um cartunista, escritor e jornalista brasileiro considerado um despótico inimigo da ditadura e do falso moralismo brasileiro. O irmão dele, Betinho, foi um sociólogo à frente da AP (Ação Popular) que partiu para o exílio em 1971.
Rabo de foguete é uma expressão usada para representar situações de perigo. Ou seja: aqueles que se manifestavam contra as formas de coação, colocavam as vidas em risco e eram obrigados a se exilar.
A mãe do Henfil chamava-se Maria. Clarice era a esposa do Vladimir Herzog - jornalista assassinado durante o regime militar. Marias e Clarices, no plural, representam as mães, irmãs e mulheres que trocaram as vidas pelo ideal da liberdade e da expressão.
A esperança é a expectativa de ver o Brasil livre e a corda bamba de sombrinha é o obstáculo político. A cada passo dessa linha, desse desejo, o sonhador pode se ferir. Azar: que se machuquem! Pois o show de todo artista tem que continuar!
Lindo, não?!? Música pode ser apenas música, mas um olhar é sempre mais que isso. Aliás, o olhar é sempre mais que tudo: é o que faz a diferença, o que muda, move e fica.
(Dalila Lemos)