quinta-feira, 28 de novembro de 2013

NAS ENTRELINHAS DE BICHO E GENTE

Tocou a campainha. Atendi da janela e desviei meu olhar para o chão da rua. Quem chamou foi um homem, sem nome talvez. Negro – e eu nunca me importei com isso. Pobre – e eu nunca me importei com isso. Sujo – (se eu pudesse, reverteria essa questão) mas eu nunca me importei com isso. Mal vestido - (até que somos parecidos) e quem se importa com isso?

Perguntei a ele o que desejava.

- A senhora pode me dar um pouco de comida? Estou com muita fome e não consegui dinheiro nem pra passagem.

De forma alguma eu hesitei.  E ele continuou:

- Na verdade, meu cunhado está me esperando na rodoviária. Ele também está com fome. Você se importa de colocar comida nessas duas vasilhas?

Estendeu os braços na minha direção. As vasilhas eram potes de sorvete que suportavam, aproximadamente, um quilo de arroz e feijão. O problema era exatamente esse: eu não almoço em casa e, se tivesse alguma coisa na geladeira, não ocuparia nem 1/3 daquelas vasilhas. Mesmo assim, eu me dispus a ajudá-lo.

 - Moço, tem problema se eu demorar um pouquinho? Não tem nada pronto aqui em casa. Preciso preparar alguma coisa para você comer.

Obviamente, ele concordou. E, inesperadamente, surgiu minha mãe.

- Minha filha, quem tocou a campainha?

- Um moço, mãe, com muita fome. Ele precisa de comida.

- Não fiz almoço, está sem nada na geladeira.

- Vou preparar alguma coisa pra ele.

- Olha, lá, hein! Vê se não vai abrir o portão na hora de entregar a comida. Pode ser perigoso. Passe as vasilhas por cima.

Bom. Eu tentei explicar a ela que a coisa nesse planeta terra anda tão feia que as pessoas, ultimamente, sequer perdem tempo com a tentativa de fingir ser o que não são. Quando boas, chegam ao bem. Quando más, chegam ao mal.

- Pode ficar tranquila, mãe. O mundo anda muito ruim. Se ele quisesse me fazer mal, não perderia tempo pedindo comida. Acho que faria isso até com o estômago vazio.

Fui à cozinha e mexi nos armários para ver o que poderia ser feito. A opção não era das melhores: miojo com feijão. Mas antes isso que nada!     Preparei também um suco de caju e peguei alguns pães que estavam sobre a mesa. 

Entreguei os alimentos ao homem. Os olhos deles se encheram de lágrimas e, ao invés de me pedir dinheiro, pediu fé.

- Faça uma oração pra mim, moça. E, mais uma vez, muito obrigada! Que Deus te abençoe.

Subi as escadas da minha casa com pensamentos bagunçados na cabeça. Que eu prefiro bicho a ser humano, não é nenhuma novidade. Mas por qual motivo eu deveria negar ajuda àquele homem? Por simplesmente ser humano? Não. Eu deveria ter feito o que fiz, sem mudar nenhum detalhe. Aliás... Cheguei à conclusão de que, às vezes, o mal se transforma no que é pelo simples fato de o bem não estender as mãos.

E eu estendi. E vou estender quantas vezes forem necessárias. 

Farei isso como um apelo pela prepotência das pessoas. Pelo egoísmo que enfeita o mundo com sua exclusividade majestosa. Pela desigualdade que nos torna tão distantes apesar de estarmos tão perto.

(Dalila Lemos)

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