sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Na minha imaginação, desde que o mundo é mundo ele se chama mundo. E o mundo carrega um mundo com ele: espaço sideral, terra, água, pessoa, bicho, objeto, substantivo, número, cor, forma, corpo, alma e mais um infinito de coisas que nem sempre são coisas – como nem sempre são infinitas.

Só o mundo é um conjunto de tudo. Se fosse a junção de nada, certamente não se chamaria mundo. Então da pra sacar que nem o grão da areia é tão pequeno quanto eu, comparada ao universo.

E se existe tudo isso, deve ser realmente um absurdo escrever sobre o PORTA XAMPU que existe em minha casa. Mas não há saída: quero falar sobre esse objeto, cujo qual eu escrevo sem hífen. Ressalto que o problema não é uma dúvida ortográfica. O erro não é meu: é do elemento eternamente solitário, constantemente frágil e frequentemente irritante. Sim! Irritante é o adjetivo mais adequado (por tal motivo, deixei-o por último).

Todos os dias meu banho é uma novela de boxe. E sabe qual a diferença de uma novela assim para a convencional? Eu consigo ficar sem TV, mas sem banho, jamais! Portanto, sou obrigada a absorver uma característica que nunca fez parte da minha personalidade: a famosa paciência.

Preciso respirar profundamente antes de olhar para ele. E, na hora de lavar os cabelos, necessito de um ritual: velas, orações e brados otimistas para que tudo de certo... Mas, frequentemente, não dá. Basta esbarrar no PORTA XAMPU para que os objetos comecem a cair sobre a minha cabeça. É algo rápido, desnecessário e azucrinante. Quando percebo, já está tudo ao chão: prestobarba, máscara capilar, pente, sabonete e saboneteira. Um saco!

Como se a situação em si não me bastasse, vejo a chuva de objetos se repetir quando tento colocá-los novamente no “dito cujo sem hífen”. Então, reforço em pensamento que a vida é mesmo esquisita. E, quanto ao traço de união, faço questão de me explicar: com tantos mundos existentes no mundo, palavras compostas que atrasam minha rotina não merecem sinal diacrítico de pontuação.


(Dalila Lemos)

SEMPRE AMOR

Um dia ele foi um susto. Depois se transformou num cisquinho. Cresceu mais um pouco e começou a entender que poderia identificar vozes... E virou dançarino de funk quando me ouviu falar!

Cresceu ainda mais e descobriu o poder do sentimento. Ficou feliz quando o telefone tocou, quando o papai chegou do trabalho e quando a vovó comprou-lhe um sapatinho.

Transformou-se, então, em inteligência. E começou a fechar os olhos ao anoitecer.

Cresceu mais e mais, quando reparou que já não havia como explorar o planeta dentro de uma barriga. Então nasceu: pra me fazer sorrir, para me ensinar o que eu jurava que já sabia. Nasceu pra ser um pouco de tudo, pra estar em cada letra da saudade quando a distância aperta. Nasceu pra me mostrar que, na vida, há mais coisas que valem a pena do que aquelas que eu já conheço.

Um susto. Um cisco. Um dançarino de funk. Um sensitivo. Um Perspicaz. Um impetuoso. UM SEMPRE AMOR! 

Amor de dinda! Amor de ser independente pra escolher aonde quer se sentar. Amor de querer mais pipoca. Amor de pirraça quando o teatro chega ao fim. Amor de "por favor, enfeite mais os meus dias".


(Dalila Lemos)

MADRUGADA

Ele se pôs junto ao pôr do sol. Mas o que me angustia realmente é o clarear do dia. Sinto o cheiro da madrugada passando, ouço os primeiros automóveis, o apito do trem, o canto de despertar dos pássaros. E já não sei se isso significa um dia a mais ou a menos! Parece que morre um pouco de mim quando o céu passa do azul negro para o azul claro.

Não é nada pessoal. São apenas lembranças iluminadas pelo brilho das estrelas. São recordações noturnas, que jamais deveriam clarear com o nascer do sol. Mas clareiam! E a temperatura já não permite que o casaco cubra o meu peito. O silêncio começa a fazer barulho. A televisão deixa de ser audiência para o vazio. E as canções... Até as canções! As canções deixam de ser só minhas.

Dia claro significa que sou dos outros. Sou do trabalho, dos vinte minutos que restam para tomar um banho e mastigar. Sou do trânsito, da buzina, da fumaça e estou em cada placa da estrada. Sou do tremor do ônibus, da enxaqueca causada pelo computador, da ojeriza que os jornais me causam e da repugnância política. Sou da mão que o mendigo estende quando chega a hora do almoço. Sou do grito, do caos, da ansiedade... 

É por isso que prefiro a madrugada! A madrugada é minha. Eu sou dela. E só tem uma coisa que complementa isso: o ponto final.

(Dalila Lemos)

EU E MEU TIC-TAC


O trânsito na Rodovia Presidente Dutra não é dos melhores. Algumas vezes fico presa enquanto tento voltar pra casa. E não tem como falar de ação sem pensar em reação... Refletir sobre o mundo é uma forma de reagir a tanta espera.

O mal não é ficar parada. É estar presa! Como agüentam os pássaros engaiolados? Se eles têm asas, por que não podem voar? Para esses e outros questionamentos só defino uma resposta: a liberdade é uma farsa.

Aquela velha conversa de que temos o direito de ir e vir é uma mentira genuína. Uma simples obra na estrada ou acidente que o valha, paralisa mais de mil vidas. Vidas presas e aglomeradas em veículos automotivos – estes dispostos sobre o asfalto, que traçam caminhos inevitavelmente influenciados para que ninguém chegue a lugar nenhum. Não existe liberdade na estagnação do trânsito. Na fluência da vida também não! 

Não somos livres pra nascer, salvo sob registro na certidão, autenticado no cartório, com formulário de requerimento preenchido e assinado pelo declarante. Não somos livres para morrer, salvo sob o pagamento dos impostos funerários.

Temos uma pseudoliberdade escondida na repressão dos manifestantes, na denominação de democracia, na imposição de status, na rotina e nas escolhas. Temos um mundo nas costas! E carregamos: os juros, os passaportes, as concessões, as taxas de deslocamento, as asas cortadas. 

Podemos ver a história passar entre as molduras da janela, mas fazer parte da nossa própria história torna-se caro (no sentido material e imaterial), pois já não somos livres nem para optarmos pela vida. 

Essa prisão me deprime e a única alternativa é fechar os olhos para imaginar a imensidão do mundo. Enquanto isso, ficamos a sós: eu e meu Tic Tac. Quisera o relógio! Mas me refiro à bala que sacia meu organismo com duas calorias a cada quilômetro de congestionamento.

(Dalila Lemos)

AQUELE ABRAÇO

Não encontrei exemplo melhor para o que eu vi no show do Nando Reis a não ser um dos textos da cronista Martha Medeiros. Mas primeiro, é melhor falar sobre o show. Depois, falemos sobre o texto.

Nando Reis se apresentou numa boate em Volta Redonda, no sábado (dia 24). Já assisti a um show dele antes e confesso que meu entusiasmo foi maior. Pareceu que dessa vez um misto de introspecção e cansaço se propagou no ar e, a cada canção, meus pensamentos perderam-se em um único detalhe: o abraço.

Um casal se abraçou na minha frente, de um jeito diferente. Foi intenso, único, interminável. Um abraço que nunca teve nome e não passou em nenhuma novela. Foi dele e dela! Não foi de mais ninguém.

Olhei. Não fiz outra coisa! Apenas olhei. E o texto da Martha apareceu pra mim como um vulto. Afinal, dentro de um abraço* existe um mundo e dentro desse mundo nos aliviamos em meio ao paraíso: do calor, do silêncio, do presente, do amor.

Foi então que pensei que ter alguém nos braços ou estar nos braços de alguém pode significar muito mais que um gesto casual. Saudade, paixão, desejo. Medo. Quem sabe o começo... Ou o próprio fim – que sempre foi inevitável – se escondeu no abraço? Para ser mais específica: naquele, do casal em que fixei os olhos.

Nunca importou o motivo: abraço sempre confortou a alma! Os dedos que já apertaram ou acariciaram nossas costas, com certeza deixaram o mundo mais leve. E no show, durante cinco músicas seguidas, o mundo de duas pessoas se livrou de qualquer peso.

Se foi o começo, não houve pressa. Se foi o fim, não teve dor. Se foi saudade, não teve limite. Durante cinco músicas, nada esteve tão certo quanto o meu palpite: abraço é lugar de gente e muita gente se sente fora do lugar porque não tem quem lhe estenda os braços.

Gente que menospreza. Gente que age com arrogância, que é chantagista, que tem inveja. Gente que não acata escolhas, não aceita as diferenças, não respeita os sonhos. Gente intrometida, fofoqueira, hipócrita, sem educação, falsa, oportunista. Gente vangloriosa. Gente malévola. Gente que não é do bem... É tudo gente que não tem um abraço que lhe baste! Não é gente igual a gente!


(Dalila Lemos)

CANÇÕES PRA CAIR

No devaneio, o brilho eterno de uma mente sem lembranças. No chão, o meu corpo: surfando karmas e DNA, num tombo daqueles de rasgar a roupa. E aquela velha mania minha (e de meia população mundial) de machucar onde já está machucado: o joelho direito – em fase de tratamento ortopédico por lesão de impacto, e o coração – porque sempre dói mais que um tombo a sensação de aflição que atrapalha a fechar os olhos quando chega a hora de dormir.

Vale uma citação: “Se alguma coisa tem a mais remota chance de dar errado, certamente dará”. Murphy estava certo. Mas acredito que, se ele tivesse me conhecido, sua lei seria bem mais rígida. Não é um caso de vivência! É uma questão de s-o-b-r-e-v-iv-ê-n-c-i-a. Eu tento sobreviver aos desacertos e aos imprevistos... Mas, de vez em quando, isso me cansa. 

A probabilidade matemática de que algo negativo aconteça é pura ciência exata. Então não adianta eu me culpar por pensar em Murphy ou no casual Mick Jagger (que já tenho o hábito de citar em algumas histórias). É negativo e pronto! Não o meu pensamento, é claro... Mas os números, as comprovações embasadas no senso de humor, que foram adotados pela cultura popular e passaram a ilustrar o cotidiano de pessoas como eu. 

Por isso não existe culpa e, só por isso, não preciso provar pra ninguém que sou uma pessoa cheia de energia positiva. “UHUÚÚ NOVA IGUAÇUUUUU”! Positivismo tão cheio de energia quanto o grito estridente de Fani, a ex BBB da baixada. A diferença entre mim e ela é que não sou famosa e, no momento em que caí na calçada esburacada da Avenida Joaquim Leite, não tinha nenhum paparazzo para registrar o meu grito de “UHÚÚÚÚ BARRA MANSAAAA!”. 

Deboches à parte, a calça que rasguei com o tombo custou 1/3 do meu salário. Ou seja, foi barata (porque nunca gostei de deboches à parte). Mas eu tinha o direito de usá-la mais de três vezes sem ter que copiar o estilo do Kurt Cobain.

‘Nevermind’, minha gente! Mandemos um beijo para o Murphy e digamos a ele que estou pronta para cantar Smells Like Teen Spirit na calçada. Uma negação!


(Dalila Lemos)

SEM MEDO DE TER MEDO

Quando criança, fui instruída a fechar os olhos caso sentisse medo. Com as pálpebras fechadas, o mundo era apenas meu. Não existia perigo nem monstros do armário que eu pudesse enxergar. 

Durante algum tempo, meus olhos ficaram fechados. E passaram-se dias. As noites também passaram. Os ponteiros do relógio deram mais de 175 mil voltas, num balé alucinante e envolvente para dançar sombrio.

Até que um dia, uma notícia bateu à porta: era a vida que tinha ido embora! 

Meu pai estava morto. Eu estava com a roupa mais bonita que havia no armário. O céu estava com o sol mais apaziguador e admirável do mundo. Em seu lugar ou não, tudo estava – de alguma forma, mais que qualquer outra coisa.

Dei-lhe um abraço apertado. Deitei-me por um instante em seu colo. E então, decidi abrir os olhos, pois sabia que o medo jamais me deixaria. 

Os dias passaram mais claros e mais difíceis. Aprendi a viver com a companhia do medo, mas nunca abri mão de nada por causa dele. Afinal, o que é o medo se não a dúvida? E o que é a dúvida se não a vida? Tudo no mundo é tão incerto quanto um tiro no escuro!

E foi assim que há duas semanas eu me vi diante de uma escolha angustiante. Meus pés, descalços sobre algumas folhas mortas, seguiram pra casa com a reflexão de que os sonhos não são equações matemáticas (previsíveis e limitadas). São combustíveis da alma!

Quando o sino da igreja bateu dez vezes, encostei a cabeça no travesseiro e ouvi uma voz dizendo que eu estava sozinha com a minha escolha. Optei por sonhar! 

Fechei os olhos porque senti medo. E, quando adormeci, sonhei sozinha um sonho meu.


PERSONAGENS

Posso fingir que sou uma personagem dos livros encalhados na prateleira? Ou então, uma cigana - sem chão e sem fronteiras? 

Posso ser Freud (ou apenas a dita loucura dele). Mas você tem que deixar... E tem que prometer que promessas não são apenas palavras jogadas no espaço. 

Você tem que desligar essa maldita água do café e me ouvir. Precisa me explicar porque não posso. Precisa delimitar esse limite, que tem uma marca no marco.

E fazer silêncio. Prender a respiração até perder o fôlego.
E esquecer por um momento. Pra depois começar de novo.

Você tem que calar minha boca às oito. E às nove, abandonar seus vícios.

Você tem que deixar... Mas precisa aumentar o volume às dez.

Eu posso fingir ser Peter Pan, enquanto meus dias não se transformam em nada de diferente. Mas você tem que deixar, enquanto se perde na neblina que embaça a janela.

É necessário: a pausa. E os desejos. E os contrassensos. 
É lógico: a causa. E as consequências. E os ponteiros.
É tolo: o tédio. E o pretérito. E a ofensa.

Escute o barulho da chuva, Laura... É uma faca! Os fragmentos estão ao chão.

E eu posso ser Chaplin. Pobre Carlitos! Mas já são mais de onze e você precisa desligar a TV.

No escuro, meus olhos não fecham. 
Eu tenho um nó na garganta. 
Meus fantasmas sentem medo.

... Mas você não deixa! E se eu não posso, não existo.


(Dalila Lemos)

DEU ZEBRA

Mick Jagger também é popularmente conhecido como “pé frio”. O apelido de azarado surgiu na Copa de 2010 quando colocou acessórios com as cores da seleção brasileira e levou Lucas, seu filho com a apresentadora Luciana Gimenez, ao estádio. O artista declarou publicamente seu fanatismo por futebol, comparando-se com a maioria dos brasileiros.

Toda energia que vinha do líder dos Rollings Stones foi canalizada para a vitória do Brasil no jogo contra a Holanda. Resultado da partida? 2 a 1 para os holandeses...E, ainda por cima, de virada!

Veja bem: só o caso da Copa do Mundo já foi suficiente para colar um rótulo de azar na testa do cantor. Agora imagine uma pessoa que passa por situações de contratempo quase que diariamente... Chato, não é?

Inocente, acreditei na previsão do tempo ontem. Para ir ao trabalho, me vesti com uma blusa de malha e um casaco que não esquenta nem pensamento. Conclusão: fez frio. A sensação térmica era de “me tire daqui em menos de cinco minutos, senão vou virar estátua de gelo”. 

Como se não bastasse as oito horas de labuta, a má sorte me pegou de jeito ao entrar no ônibus. Optei pelo corredor e senti uma ventania sacudir minhas madeixas. Meu nariz gelou. Minha mão ficou rígida. E eu me irritei! Por que diabos as janelas estariam abertas em plena noite de inverno? Mas não existia plural. Não havia nada além de uma única janela aberta: a do coleguinha gente boa, cujo qual eu me sentei ao lado. 

Se um caso não faz a fama, eu conto outro. Hoje, por exemplo, rezei para que o sol surgisse por entre as nuvens cinzas. Tive medo de a baixa temperatura diminuir minha resistência à dor, pois marquei uma sessão de tatuagem para as 18h. Deus ouviu as preces e o sol brilhou no céu. Parece legal? Então atente-se ao desfecho: meu telefone tocou... O tatuador estava passando mal... Fui agendada para a próxima semana (e o sol continuou radiante).

Sei que previsões meteorológicas e questões de mal estar são um tanto quanto imprevisíveis. Mas, se fosse só isso, talvez eu não me queixasse. 

O fato é que acontece algum infortúnio comigo praticamente todos os dias. É o papel do caixa que acaba quando chega minha vez de pagar, é o cartão do banco que sofre tentativa de clonagem, é o telefone que toca quando estou com tudo pronto para ir embora do trabalho...

Se eu torço pelo meu time, o adversário vence. Nunca ganho uma rifa. Erro todos os bolões. Já desisti dos bingos. E não acertei nenhum número da megasena no dia em que meu avô implorou para que eu escolhesse. 

O nome disso? Azar. 

O meu nome? Dalila... Mas pode me chamar de Mick Jagger!

(Dalila Lemos)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

NAS ENTRELINHAS DE BICHO E GENTE

Tocou a campainha. Atendi da janela e desviei meu olhar para o chão da rua. Quem chamou foi um homem, sem nome talvez. Negro – e eu nunca me importei com isso. Pobre – e eu nunca me importei com isso. Sujo – (se eu pudesse, reverteria essa questão) mas eu nunca me importei com isso. Mal vestido - (até que somos parecidos) e quem se importa com isso?

Perguntei a ele o que desejava.

- A senhora pode me dar um pouco de comida? Estou com muita fome e não consegui dinheiro nem pra passagem.

De forma alguma eu hesitei.  E ele continuou:

- Na verdade, meu cunhado está me esperando na rodoviária. Ele também está com fome. Você se importa de colocar comida nessas duas vasilhas?

Estendeu os braços na minha direção. As vasilhas eram potes de sorvete que suportavam, aproximadamente, um quilo de arroz e feijão. O problema era exatamente esse: eu não almoço em casa e, se tivesse alguma coisa na geladeira, não ocuparia nem 1/3 daquelas vasilhas. Mesmo assim, eu me dispus a ajudá-lo.

 - Moço, tem problema se eu demorar um pouquinho? Não tem nada pronto aqui em casa. Preciso preparar alguma coisa para você comer.

Obviamente, ele concordou. E, inesperadamente, surgiu minha mãe.

- Minha filha, quem tocou a campainha?

- Um moço, mãe, com muita fome. Ele precisa de comida.

- Não fiz almoço, está sem nada na geladeira.

- Vou preparar alguma coisa pra ele.

- Olha, lá, hein! Vê se não vai abrir o portão na hora de entregar a comida. Pode ser perigoso. Passe as vasilhas por cima.

Bom. Eu tentei explicar a ela que a coisa nesse planeta terra anda tão feia que as pessoas, ultimamente, sequer perdem tempo com a tentativa de fingir ser o que não são. Quando boas, chegam ao bem. Quando más, chegam ao mal.

- Pode ficar tranquila, mãe. O mundo anda muito ruim. Se ele quisesse me fazer mal, não perderia tempo pedindo comida. Acho que faria isso até com o estômago vazio.

Fui à cozinha e mexi nos armários para ver o que poderia ser feito. A opção não era das melhores: miojo com feijão. Mas antes isso que nada!     Preparei também um suco de caju e peguei alguns pães que estavam sobre a mesa. 

Entreguei os alimentos ao homem. Os olhos deles se encheram de lágrimas e, ao invés de me pedir dinheiro, pediu fé.

- Faça uma oração pra mim, moça. E, mais uma vez, muito obrigada! Que Deus te abençoe.

Subi as escadas da minha casa com pensamentos bagunçados na cabeça. Que eu prefiro bicho a ser humano, não é nenhuma novidade. Mas por qual motivo eu deveria negar ajuda àquele homem? Por simplesmente ser humano? Não. Eu deveria ter feito o que fiz, sem mudar nenhum detalhe. Aliás... Cheguei à conclusão de que, às vezes, o mal se transforma no que é pelo simples fato de o bem não estender as mãos.

E eu estendi. E vou estender quantas vezes forem necessárias. 

Farei isso como um apelo pela prepotência das pessoas. Pelo egoísmo que enfeita o mundo com sua exclusividade majestosa. Pela desigualdade que nos torna tão distantes apesar de estarmos tão perto.

(Dalila Lemos)

O CICLO

Se por algum momento eu sentei-me numa cadeira e pedi algum tipo de opinião, agora o que peço são desculpas. Desculpas sinceras de alguém que só queria uma diretriz. Desculpas francas de quem não sabia que opiniões são mentiras: jogam-nas da boca pra fora com a intenção de te agradar, depois ridicularizam o resultado.

E como é mesmo a vida? Uma cerveja importada, talvez. Posta sob uma mesa de madeira, com duas dúzias de “amigos” em volta e um som qualquer ao fundo.

Na verdade eu nunca me importei com as escolhas de cada um. Nem se preferem dinheiro ou status, muito menos se conhecem duas ou duas mil pessoas. Nunca dei importância à música que ouvem: se é uma relíquia dos discos de vinis no gênero do rock ou um CD com as dez mais tocadas, adquirido no camelô. Eu não ligo se conhecem gente conhecida ou se apenas se relacionam com pessoas que estão a mil anos-luz da mídia.

Tudo bem que alguns gostos me incomodam, mas não chega a ser motivo de preconceito. Acho que o meu único preconceito é com o preconceito em si... Mas tem coisa que toca a minha ferida... E a arrogância é uma delas.

Ver alguém que se acha melhor que outro alguém, me incomoda realmente. Não me interessam os pontos juntados: isso não muda os acontecimentos. 

Existe um ciclo tão certo quanto qualquer dúvida no mundo: um dia você nasce, outro dia qualquer você morre. E não interessa se dentre esse ciclo você foi o cara que fez e participou dos melhores eventos, que encheu sua casa de raridades compradas facilmente nas Capitais ou que se entupiu de frases machistas e cerveja pilsen. 

Você pode ser quem for: negro ou branco, gordo ou magro. Pode ser um debochado, um cavalheiro, um ator, um deus contemporâneo ou um perfeito grosseirão. Não importa o seu cargo, o seu carro, a sua classe social. Nem seus livros, seus discos, seus anseios, seus amores, suas criações, suas frases originais. O ciclo vai fazer a sua parte e você vai virar comidinha de barata do mesmo jeito que eu. 

A sua essência fica. Só a sua essência.

E como é mesmo o final da vida? Um pedaço do nada, um bocado de solidão. 

(Dalila Lemos)