quinta-feira, 31 de março de 2011

CINCO COISAS QUE ME MATAM

1: Passarinho na gaiola. Não há nada mais agonizante que ver um bicho com asas, preso numa gaiola. Tem como piorar? Saia à rua e pergunte ao rapaz o que ele faz com a gaiola na mão. Escute-o responder que está levando o pássaro para passear. Feito isso, conteste minha pergunta.

2: Gol contra: 10 x 0 para ele! Aliás, o gol contra não representa minha morte somente, ele trucida qualquer partida de futebol. E não adianta tentar analisar a psicologia da jogada, pois para mim, é merecida uma crítica aos níveis dos xingamentos da mãe do juiz.

3: Arrogância. Palmas para a assassina em série! Ela mata minha esperança, minha criação, minha paciência e até mesmo meu entendimento sobre poucas coisas neste mundo. Eu realmente não entendo o que leva uma pessoa a se achar melhor que a outra e a empinar seu nariz. Prefiro não repetir tudo aquilo que a tia do C.A falou e, para não perder tempo explicando que vamos todos virar comidinha de barata ao morrer, escrevo a seguinte frase: “Vai uma sandália da humildade aí?”.

4: Termos em inglês. Oh, my God! Eles assassinam o encanto da minha língua pátria. É difícil, confesso, preocupar-me absurdamente com a escrita e com o dicionário, para depois perceber que meu feeling está em out. Às vezes tento transformar pontos negativos em positivos, mas nunca entendo por que é necessário avaliar o feedback em vez de o retorno. Quando percebo, meu approach é outro: já troquei correspondências por mailings, recados por scraps e cafezinho por coffee break.

5: Uma bola de sorvete, pela análise da Danuza Leão. Eu não gosto de sentir vontade de saborear um litro de sorvete e descontar minha pretensão em exercícios aeróbicos. Como a própria autora disse, o sorvete é apenas um exemplo. Eu não gosto de trocar beijos por abraços, simplicidade por dinheiro, sonhos por capítulos de novela. Não gosto de trocar segredos por manchetes de jornal nem o vento pelo ar condicionado. Transformar o cotidiano em desejos (opcionalmente) insaciáveis é a morte mais dolorida para mim.

(Dalila Lemos)

quinta-feira, 17 de março de 2011

POR TRÁS DA PAISAGEM


A janela entreaberta, o vento balançando a cortina. A poltrona deitada, o livro no capítulo seis e alguém no asfalto. Parecia despreocupada, sorrindo e empurrando sua bicicleta velha. Vestia uma camiseta azul que não acentuava seus seios e um colete transparente.

Era Lúcia, Maria, Joana, Cristina. Era quem quer que fosse! Podia ser... e era! Sônia talvez. Quem sabe Ana. Ou Ana Carolina. Era mulher aquela moça simples. Era simples aquela moça mulher.

Eu, perdida entre toda simplicidade, assumia-me complicada, ridícula, submissa às hostilidades do mundo. Convencia-me de que um longo dia sem trabalho (suficientemente) esgotava-me de tédio e alguns minutos de desejo (indelicadamente) matavam-me de tensão.

Morria? Todos os dias até àquele. Como se não bastasse a mim o sorriso de uma moça como aquela ou como se não fosse suficiente fazer escolhas pessoais, tocar o limite do meu mundo, espalhar minha personalidade.

O ônibus sacudia e, aos poucos, a paisagem escondia a moça. Eu perdia de vista sua calma, depois sua roupa e sua expressão. Era Bárbara? Eu não sabia! Perdia também a idéia do seu nome.

Diante daquele cenário despido de alcunha, de nuança e semblante, chegava ao fim meu carnaval. Sem fantasia. Nua. Sem pensamento. Nu. Sem nada além de seis dias e seis capítulos mortos.

Quisera ouvir o som que a parede calou ou sentir a chuva que a cortina escondeu. Quisera rir com os sorrisos e por um instante ser aquela moça que a paisagem levou embora. Embora fosse eu apenas eu mesma, embora tudo um dia fosse embora.

(Dalila Lemos)

O QUE FICA


É verdade que a saudade dói muito, que me deixa completamente sem reação diante dos meus próprios sentimentos. Por outro lado, é verdade que a lembrança ameniza a dor e me leva a uma viagem gostosa. Às vezes rouba de mim alguns sorrisos que espalhei nas brincadeiras da infância, nos dias de faculdade ou na rotina do trabalho.

Ausência? Sim. Mas nada que substitua sua presença nos dias vividos com alegria, nas músicas ouvidas com paixão, no calor de uma fogueira ou no respeito de uma conversa. Saudade? Sempre. Mas nada que tire minha força. Muito pelo contrário, as lágrimas também me fortalecem.

Existe um espelho que hoje reflete tudo o que faço. Com alguns feixes de luz é possível enxergar a vida de um modo diferente. É possível substituir a culpa do que não foi feito pela essência do que foi realizado.

Nesse reflexo de saudade e recordações é possível entender que a vida leva o corpo, mas por justiça, deixa o amor.

(Dalila Lemos)

APENAS UM DIA

Tive um dia ruim. Nada exagerado como os romances de Shakespeare nem tão detalhista como os textos de Assis. Foi apenas um dia. Foi apenas ruim.

Perdi o sono às quatro da madrugada. Revirei-me na cama tentando eliminar ideias, mas as próprias ideias me eliminaram. Eu fui, por um momento, conduzida às lembranças de um velho tempo (definido como outrora por alguns poetas decantados).

O passado me consumiu tão completamente, que não pude negar um receio pelo futuro. Meu amor nunca foi meu... meus amigos também não. Pessoas estiveram ao meu lado movidas a interesses egoístas, vivendo em função dos benefícios próprios.

Refletindo sobre isso, senti medo, um temor desmedido de que tudo se repetisse. Pensei, por um momento, se seriam meus erros os responsáveis por toda essa hostilidade. Mas não encontrei nenhuma resposta que me convencesse disso.

Os ponteiros andaram algumas vezes e eu permaneci com a cabeça sobre o travesseiro. Quis encontrar um antídoto para o mundo. Quis descobrir maneiras de devolver ao perdão sua necessidade; à sinceridade, sua importância; ao amor, sua essência e à amizade, seu valor.

Realmente senti obrigação de colorir o mundo para que os corações pulsassem um sangue mais vivo e os olhos enxergassem mais nítido o verde da natureza. Então, devolvi a alma ao corpo e uma sensação de alívio dominou-me. Naquele instante, a insônia venceu a luta pelo sono e eu me rendi a ela.

Levantei-me, tomei um banho demorado, vesti a primeira peça que avistei no guarda-roupa e escolhi o calçado mais confortável. Iniciei um novo dia a partir dali. Um dia que não dependia de mais ninguém além de mim. Um dia melhor. Um dia de dar bom dia, de sorrir para a vida, de eliminar o que for defeito e restaurar o que for qualidade. Apenas um dia bom. Apenas meu.

(Dalila Lemos)

ALGO A MAIS QUE O VERMELHO

Nem o comentário mais ridículo do mundo era tão inconveniente quanto aquele. Depois de um longo dia de trabalho, eu subia a rua pensativa. Como sempre, havia um fone em meu ouvido e eu escutava músicas no último volume enquanto refletia sobre minha rotina.

Confesso que, ao observar um menino com seus cinco ou seis anos de idade, fixando o olhar nas minhas madeixas vermelhas, o som alto sequer atrapalhou minha audição. Pude ouvir a mãe da criança falar em um tom ameaçador: “-Viu só? Se você ficar chorando, ela vai te pegar!”.

Em que tipo de “Bruxa do setenta e um” eu havia me transformado? Logo eu, que no mesmo dia alimentei dois cachorros de rua, ajudei alguns internautas que não conheciam a barra de rolagem e ainda transportei minhas sacolinhas ecológicas ao supermercado! Entre duas opções, restava uma dúvida: ou aquela frase saía da boca de alguém que não fazia a menor idéia de seu significado, ou então, Deus castigava meninas ruivas que fingiam dormir no ônibus para não ceder seus lugares a outros passageiros. (Dúvida cruel!).

Adormeci, passados cinqüenta minutos. No dia seguinte, bastou entrar em um restaurante para descobrir meu novo apelido. Pensava que tudo se limitava a uma insanidade qualquer, aliás, era realmente uma loucura... mas acontecia realmente e, eu não podia fugir daquilo! Um menino me olhava, enquanto o pai me convencia: “- Você não é um E.T? Diz pra ele, diz! Diz que você é um E.T!”. Assustada, pensei em escapar dali, mas quando dei por mim já falava ao menino “- Seu pai tem razão. Sou um E.T!”.

Céus! Que extraterrestre trabalhava quatro horas além de sua carga horária, ajudava um cego a entrar na condução e ainda dava vestimenta ao mendigo? A resposta era: eu! E cansava, esgotava-me ao perceber que vivia em um mundo onde o original era igual e onde a personalidade assustava, modificava os conceitos.

Enquanto me acomodava no banco da praça para ler um romance, pensava no episódio da semana anterior. Estava num salão de beleza, no momento em que uma desconhecida disse: “- Nossa! Isso é tinta de cabelo mesmo? Você é corajosa, hein!”. Minha vontade foi responder que a tinta não era de cabelo, e sim de uma impressora que eu havia consertado. Em relação à coragem, contive-me para criticar o mau uso da palavra e dizer que bastaria uma peruca ruiva no Scooby Doo para que ele se tornasse visivelmente corajoso. Acabada a lembrança, concentrei-me no livro.

A leitura foi interrompida por um senhor, que aparentava ter uns oitenta anos. Ele sentou-se ao meu lado e fez algumas perguntas irrelevantes. Pacientemente, respondi uma a uma. Meu ônibus chegou e, no momento da despedida, ele disse: “- Gostei muito da cor que você pintou o cabelo”. Ao sorrir, todo o meu desconforto foi-se embora e deu lugar a uma certeza: Nada melhor que um velho para combater o preconceito com o novo!”.

(Dalila Lemos)

terça-feira, 15 de março de 2011

OLHO NU


A boca que não te beije

Que não te toque a mão

Mas os olhos,

Os olhos não.

Que te olhem sim a qualquer momento

Que sejam um sim no pensamento

Mas na realidade,

Na realidade não.

Na fantasia do olhar

Que a loucura não se reprima

Que o medo seja uma esgrima

E afronte toda ilusão.

E que você, com seu pedido vazio,

Fique em silêncio no meu mundo vadio

A olho nu, na contramão.

  (Dalila Lemos)

UMA CONVERSA, UM DOMINGO, UMA ESTRELA

Tudo começou com uma conversa. Uma conversa diferente porque não há nada mais diferente que conversar com alguém que você não conhece. E ele me disse que o tempo passa, os pensamentos se transformam e os interesses mudam. Disse também que, algum dia, eu optaria por outros amigos e lazeres.
Foi um domingo atípico em que estive sozinha por alguns instantes. O sol, radiante, iluminava a rua. Eu saí apenas com a intenção de fazer companhia para minha mãe, mas voltei para casa com um DVD do Tom Jobim nas mãos.

Guardei meu maestro brasileiro na gaveta e peguei um livro do Paulo Coelho. A decisão foi difícil e, ao mesmo tempo, importante. Eu quis me livrar da péssima mania de dizer que não gosto de algo sem antes experimenta-lo. E fiz por opção, para tudo ser mais gostoso.

A página vinte e dois me martirizou, mas mastiguei as folhas seguintes. Degustei cada trecho como se fizesse parte dele. Mergulhei naquela deserta alquimia, onde existiram amores sem pressa e sonhos sem limites.

Sem perceber, o livro chegou ao fim e eu cheguei à conclusão de que faltou algum motivo capaz de me contagiar. Procurei o tal pretexto no DVD do Tom e encontrei Gal Costa cantando ‘Dindi’. Acredito que fiquei imóvel durante outras cinco músicas, enquanto aquela melodia repercutia em minha mente.

Pela primeira vez, mesmo sem ninguém ao meu lado, eu não me senti sozinha. Encontrei-me na bagunça do quarto, no vento que me chamou pela janela e nos discos esparramados pela cama. As horas passaram e eu percebi que as paredes eram apenas um pouco de mim. Então, pedi à rua que me esperasse e fui ao encontro dela.

Lá fora, com o mundo sob meus pés, enxerguei a multidão abafada. Por um momento, percebi que meu amigo desconhecido estava certo: um dia eu optaria por outros amigos e lazeres.

Ignorei a monotonia das frases feitas, a garrafa de cerveja, as conversas sobre futebol. Olhei para o céu e optei pela estrela mais brilhante. Naquele momento eu me escolhi.

(Dalila Lemos)

sexta-feira, 11 de março de 2011

CONTRATEMPO

Chá com biscoito, janela e paisagem. Cadê? Laura faça-me o favor: quebre seu espelho, seus discos, sua cara. Existem em você oito andares de muito perigo... Eu adoro perigo! Então me explique como não seguir em frente.

Mas eram duas e meia da manhã. Agora está frio, está escuro, está deserto. Apenas você a andar pela casa e chamar por mim. Eu diria que estou ficando louca se não fosse tudo tão parecido. O relógio contando o fim, a noite te arrastando – incapaz você de andar com as próprias pernas, causando inconsciência e provocando um incômodo incomparável a qualquer outro.

Tenha calma. Coma mais uma unidade, toma mais um gole, dê mais um trago. Não me encha, Laura! Quero ficar sozinha. Não tenho tempo o suficiente para compreender suas loucuras. Sim, loucuras suas! Pode estar louca pela diferença.

Perdoe-me por ser tão imperativa, caso contrário você me domina. Abra sua gaveta, lá você encontra tudo que precisa. Hei menina, pense bem, pode ser mais complicado do que pensa. É muito alto, seria uma queda e tanto. Capa de jornal se você não estivesse sozinha. Uma puta matéria se eu não estivesse sozinha. Perfeição se não estivéssemos sozinhas.

E eu caminho por aí enquanto a noite te arrasta. É impossível falar em simetria, é inútil fazer você entender que não tenho explicação para o que sou e mesmo assim continuo sendo. Suas idéias talvez estejam em algum lugar muito distante, eu sei... próximo demais daqui.

Vamos fazer um trato? Você come meus olhos de mel, enquanto embaço seus olhos de vidro. Demoraria uma eternidade. Talvez seja melhor quebrá-los: os olhos e o perigo. Como em todas as vezes que me vi juntando cacos. Entre tantas outras que nos vimos distante. Está tudo preto agora.

(Dalila Lemos)

MUITO ALÉM DA SAUDADE

Hoje à tarde, enquanto devagar me aprontava para o jantar, colocava reticências nos meus pensamentos. Eles eram infinitos, intensos, humanos. Lembravam muito com apenas um pouco. Invadiam o quarto, as músicas, o cheiro de café, o gosto do pão. Já não me bastava ser quem era, mas notar esse sentimento nostálgico que me alimentava.

A árvore de Natal estava montada e enfeitava minha alucinação. Esquecia o relógio, os compromissos e o atual. O único presente que eu segurava era uma caixa pequena, envolvida por uma fita prateada. Há anos atrás eu estava sentada ao lado dessa mesma árvore, olhando ansiosamente para a janela à espera do Papai Noel.

De tudo aquilo, sobrava apenas uma certa agonia por saber que meus desejos eram diferentes. Não havia carta para pedir presentes, os brinquedos já não me interessavam e o que eu mais desejava não estava ao alcance da figura lendária de barbas brancas e vestimenta vermelha. Era o primeiro Natal sem o silêncio do meu pai...

Sentir saudade me incomodava naquele momento, porque não havia apenas recordações de coisas que deixei de viver por opção ou por amadurecimento. Minha lembrança maior era de uma pessoa que se perdeu de mim sem deixar aviso e sem me conceder espaço para mostrar o quanto eu a amava. Havia um vazio. E esse vazio só podia ser preenchido por lembranças de épocas que não voltavam mais.

No ciclo vicioso do verbo lembrar, um pensamento me conduzia a outro. Algumas lágrimas caíam enquanto eu tentava entender o tempo e o sentido de viver. Aos poucos, a casa enchia, o som aumentava e eu perdia meu espaço para o autoquestionamento.

Ainda imóvel, fazia de conta que estava tudo bem... até perceber que realmente estava. Os olhos do meu sobrinho se fixavam nos meus e, em pouco tempo, um sorriso refletia em mim. Não existia nada mais bonito que a inocência daquela criança! Qualquer dor que a saudade me trazia, era então apaziguada pelo entendimento de que a vida é um rio em constante movimento.

Nada parava por ali. Eu sabia que viver me faria perder, mas também ganhar. Aos poucos, a nostalgia se transformava em algo mágico: na certeza de que a saudade era fruto de lindos momentos já vividos. Reinava então o espírito de Natal!

(Dalila Lemos)