sexta-feira, 27 de julho de 2018

ALÉM DO VENTO

Foi pipa no céu. O movimento leve das coisas que o vento ergue, que o vento leva. A gente nem sempre compreende quando não se basta: derrama o abecedário e observa, estático, a imensidão do universo. 

A princípio assusta porque não cabe tudo que não foi possível fazer. As três folhas da prova de matemática, uma cidade, a Aurora Boreal, 21 km. Não dá para conter as noites mal dormidas de quando o tempo escapou pelos dedos sem aviso prévio ou daquilo que era muito e se despediu.

É normal não entender. Nem Noturno de Chopin exclamando reticências nem a desconexão do quanto pesa quando você não deve, mas quer.

A vida tem disso em cada lacuna. Tem um espaço. Um amigo que foi embora, um capítulo não lido, um nó na garganta de outros nós que se desfizeram no meia da rua. Somos vulneráveis pra transcender limites!

Olhando pra cima dá pra perceber que o que machuca nem sempre é um tanto; às vezes é uma gota, que cai delicadamente nas costas. Às vezes é a dor do outro ou o tédio de limpar o tapete por obrigação porque aprendemos a ser adultos. E entre tudo isso, tem muito de todo mundo. Em cada um tem um sorriso que marca, uma flor no jardim, um momento que deveria continuar ali.

Se a pipa não cai, é física. Todo restante é a gente.

(Dalila Lemos)



segunda-feira, 16 de julho de 2018

EPÍLOGO

A uma dúzia de palavrões ele se resumia. Saliva ardendo cada dose de cachaça e, mesmo que ébrio ou sóbrio ou coisa nenhuma, para si justificava: instinto, que perdura.

Já passava das três. E quando chega qualquer hora, não há instante para o domínio. Tem um quê de muro de concreto, corpo, carne, imensidão do desejo. E as vadias! As malditas vadias!

Dava pra ver poeira nos livros. Eles não significavam nada, absolutamente nada sob a luz tênue no balcão. O que importava era o cheiro por debaixo do vestido, a língua trincando entre os dentes, mais uma dose, o impulso. E a coisa ia de tal forma, que só sobrava sinal de silêncio. As palavras misturavam-se ao pó, caladas à força no epílogo.

A recusa se perdia porque negando eram putas, e aceitando eram também. Do constrangimento à excitação: verdadeiras putinhas, quase imprestáveis não fosse uma ou outra pretensão. Vadiazinhas de merda, frustradas, visionárias; consumidas pela ânsia de um lençol amarrotado, um chão gélido, uma parede suja e um resto qualquer de solidão.

Mas a conta sempre fechava com conivência à nostalgia. Havia incessantemente uma rua qualquer, um pássaro qualquer, um banco de praça qualquer e um qualquer de qualquer jeito que trazia melancolia. Às vezes o café, a leveza de uma conversa, a delicadeza do cuidado. Às vezes o próprio teto, uma melodia, o calor do abraço, o sol refletindo saudade. Ah, como seriam putas as tuas putas se ao menos putas fossem!

(Dalila Lemos)

quarta-feira, 11 de julho de 2018

FUGA

Eu olhei as nuvens refletindo na poça d'água que se formou no desgaste do asfalto. Pensei sobre a vida e sobre o que estou fazendo dela, com esse coração que fica onde acha o lado bom em um canto. Eu, que sempre enfrentei tudo, me vi em desespero.

E ainda que sorrindo - em total desespero - entre crises e fantasmas e barulho de chuva e um tanto de frio e um pouco de mim embaçado, supliquei.

Eu que já enfrentei a distância, os codinomes, as falhas, as consequências. Eu que desafiei os deuses, encarei o tombo, superei o abuso, confrontei as aparências, fitei o perigo. Eu, que me desacelero quando as nuvens passeiam do céu ao chão, só imploro que, ao menos uma vez, tenha o direito da fuga.

(Dalila Lemos)

sexta-feira, 6 de julho de 2018

190 NÃO É

Remédio. Gadernal. Telefone, ligação, ambulância. Qual o número??? Calma! Que tal tentar um calmante... Mas... Alguém pode me explicar o que está acontecendo?

O velho enlouqueceu, dizia Soraia. Como assim enlouqueceu? Perguntava César. Com um ar de superioridade, a outra respondia: ora, meu caro, enlouquece quando atinge a extravagância da aventura insensata e recorre à alienação mental.

Já passara da hora de alguém ser mais claro. A outra tinha visto o começo e acabou expondo a situação como uma tragédia. Parecia dar conta dos vultos, das sombras na parede, daquele maldito cimento que ninguém entendia como tinha aparecido na história. Acabou nos levando a uma sala, tão abafada e que só aumentava nosso desespero.

Um dedo apontou. Lá estava o velho! Numa cadeira de madeira lixada, amarrado com uma corda grossa e os pés afundados numa bacia de cimento. O certo seria ter uma cobaia por perto, porque, na verdade, ele não se tornaria escravo e prisioneiro de si. Mas não havia ninguém .

Tá bom, a psicologia precisava entrar em ação imediatamente. Fácil é entender que os velhos regridem, mas como explicar a insanidade?!? Dizia ele que não estava louco: era amor. Amor mortal! Sentia-se como se a vida não expandisse pra nada, pra nenhum lugar, e ele não passasse de alguém testando seus limites além do estado de estar parado. Não havia mais sorrisos, não ouvia mais canções, não falava mais bobagens. O velho estava preso a alguém que não voltará jamais.

Mal passaram aqueles dois dias e teve mais um enterro. Aquela choradeira que só vendo! Os nervos a explodirem!

Remédio? Gadernal? Telefone? Ligação? Qual o número da ambulância? Poderiam tentar um calmante... Mas... Acho melhor um novo coração.

(Dalila Lemos)