segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A QUESTÃO


A questão não é ser egoísta, orgulhosa, dona da razão. Não é só isso, tem mais coisa! Não é só ser humana... é ser humana, ridícula e limitada. É atropelar o tempo, atropelar os sentimentos, atropelar as idéias, as conquistas, o espaço sideral. É pisar em castelos de areia, plantar espinhos, fazer com que o sólido entre em estado de vaporização.

A questão é ver os defeitos ao invés de cuidar das 
qualidades. É não ter medo do medo que se possa ter. É buscar o que já se tem e deixar escapar o que se busca. É fazer tudo errado sempre, por mais que os conselhos existam.

A questão é mudar o cronograma, de forma banal, e se perder na ocasião. É acordar do sonho quando ainda é madrugada. É ser o braço direito do arrependimento e o lado esquerdo da razão. 

A questão é perceber que já é tarde, que já não é esperado o que se espera. Sentir uma dor que eleva mil agulhadas no peito. Sentir vontade de nunca mais sair de um abraço e não encontrar uma fórmula capaz de resultar em si mesma.

(Dalila Lemos)

BRAÇO DIREITO DA MUDANÇA


Não é simplesmente dizer que sou a favor do aborto. Ainda que eu não tenha coragem nem vontade de faze-lo, considero menos agressivo que o abandono.

Vida sem carinho é vida jogada no lixo. É pra lá que eles vão, é isso que eles podem se tornar quando uma gravidez indesejada não é interrompida. Lixo! Resíduo de esperança no cérebro, destroços de futuro, restos da essência de existir.

É estranho falar a respeito, pois ter a mente aberta não significa tornar-se insensível. E é difícil ser a favor de um gesto tão cruel e assustador. Não digo desumano, pois é humano a partir do momento em que destrói a própria natureza e o próprio ciclo... Mas trata-se de um gesto que limita a opinião até dos estudiosos e especialistas.

Por trás de todo o processo que engloba os verbos ENGRAVIDAR, DECIDIR e INTERROMPER existe aquela velha questão mal discutida pelos governantes: a educação. O mesmo acontece com os verbos NECESSITAR e ROUBAR, MATAR ou MORRER, PROSTITUIR e GANHAR.

Educação é a chave que poderia abrir portas para caminhos não explorados... Caminhos que não fazem parte das propostas políticas que assistimos na televisão, dos dados orgulhosamente impressos nos outdoors ou dos jingles propagados a mil decibéis.

É uma tarefa complexa expor a idéia de que instrução é o braço direito da mudança, embora seja verdade. Povo instruído é povo que sabe como cuidar mais da saúde e, com isso, diminui o quadro de enfermidades. Povo que tem educação é povo que aprende outras formas de ganhar dinheiro e descarta a possibilidade de vender o corpo para se sustentar. Instrução pode fazer com que a morte escolha a vida, o mal escolha o bem, a escuridão escolha a luz.

E, depois de tudo, o que dizer em relação ao aborto? Não sou contra ele, mas sou muito mais a favor do preservativo que a população deixa de usar por falta de instrução. 

(Dalila Lemos)

TEMPO E PERDA



Às vezes esqueço. Compromissos, letras de música, momentos passados, textos... Esqueço-me! Vida agitada dá nisso: a gente fica sem lembrar o tom do último tonalizante que coloriu as madeixas desbotadas, deixa passar o aniversário da amiga, perde a noção de como está grande o afilhado. Esquece quando é dia de lua cheia, quando é dia de ir ao médico ou qualquer outra das centenas de datas comemorativas. 


Correria é sinônimo de esquecimentos absurdos. Já perdi as chaves e encontrei-as na geladeira, próximas ao requeijão, no compartimento de frios. Que hilário! Perdi também alguns trocados e encontrei-os dentro de um par de meias, naqueles rolinhos que muita gente tem mania de fazer. Um verdadeiro absurdo!

Celular já ficou no banheiro. Já achei CD na maleta de maquiagem, vesti blusa ao contrário, coloquei cadarços diferentes em tênis iguais e brincos de pares trocados nas orelhas. Se bobear, já até bebi uma cerveja de uma marca pensando que era de outra.

Correria é sinônimo de perda. Perda de tempo pra mim. Tempo para me dar o luxo de não ter que correr para pegar o ônibus, tempo para tomar o café da manhã sentada, para dormir as oito horas tão exigidas pelo próprio organismo e para assistir ao meu DVD favorito... 

Mas sabe de uma coisa? Tempo pra mim eu não ligo de perder. O que me dói é perder pessoas que amo por não ter tempo de perceber que elas estão indo embora.

(Dalila Lemos)

TERRA E ASFALTO




Um fim de semana é pouco. Sábado e domingo poderiam durar mais tempo, visto que a vida no campo passa rápido demais. Só a sensação agradável de respirar um ar puro já consome boa parte do dia... E ainda tem ponteiro de relógio pra provar que vinte e quatro horas não duram nada quando o céu está todo estrelado.

Vida no campo é vida que vale a pena! Ninguém acorda com buzina de caminhão, com propaganda política nem ronco de moto. O funk passa longe, o celular não toca e o único barulho que se escuta à noite é do vento batendo nas árvores ou das gotas de chuva molhando a terra.

Cheiro de café logo cedo. Comida feita no fogão à lenha. Água sem cloro, bicho sem jaula, alma sem poluição. 

Depois fica difícil: é um tal de dobrar edredom, arrumar a mochila e pegar travesseiro pra ir embora. 
É um tal de perder de vista a estrada de chão e encarar o asfalto debaixo de um céu preto. 
Pior quando chega em casa: é notícia ruim na televisão, fruta cheia de agrotóxico, gritaria nas igrejas, “tchetchererê” no carro, pedra no cachorro, panfletos no chão, briga nas ruas, sirene nas ambulâncias... Não é à toa que o estômago embrulha! Não é por falta de motivo que o sono não vem.

Entre prédios e fábricas, entre ternos e gravatas, há muita coisa pra entender. Parece que macumba compra cargo, falsidade garante emprego, dinheiro sustenta amor, interesse atrai amizade e consideração não significa nada. Vida na cidade é vida esquisita!


(Dalila Lemos)

NÃO DE SEGUNDA



Eu queria falar das flores, mas não consigo. Queria dizer que é melhor fugir do prejuízo que correr atrás dele. Ou então falar sobre guerra, fazer crítica política, mostrar as injustiças do mundo. Poderia comparar canções ou mostrar entusiasmo com algum filme em cartaz nos cinemas. Mas não... Eu não consigo! Então decidi: vou contar sobre o meu dia. 

Acordei muito cedo. Todos que me conhecem já sabem que detesto levantar com as galinhas. A televisão ligou sozinha às seis, como uma forma de gritar irritantemente no meu ouvido “levantaaaaaaaaaaaa e vai trabalhaaaaaaaaaaar!”. Que triste é essa comunicação com os eletrodomésticos! Pior ainda quando o alarme do celular insiste em reforçar o recado. Peço desculpas, mas existe em mim certa rebeldia quando o assunto é segunda-feira e NÃO, eu NÃO  recebo ordens de despertador!

Vinte e cinco minutos  passaram até que decidi tomar um bom banho, quente e demorado. Tentativa em vão, porque nenhum chuveiro que se preze fica realmente quente quando os galos ainda estão cantando. O jeito foi não enrolar tanto e acabar logo com isso.

Troquei de roupa. Uma peça no corpo e outra na mão: é assim que funciona quando tenho que trabalhar em mais de uma gravação. A mochila fica cheia igual ao ônibus que entro e a coluna vai pro saco.

Depois é hora de esperar. Esperar o sol decidir se vai ou fica, esperar o  vento parar de soprar no microfone, esperar a terceira idade falar mais baixo... Esperar o caminhão sumir do cenário, a moça da faxina batucar a lata de lixo, o casal da caminhada passar logo em frente à câmera. Se gravação de segunda-feira fosse nome de filme, seria “A espera de um milagre”.

Mas tudo bem. Uma hora acaba! Então eu me sento em frente ao computador e escrevo qualquer coisa. Enquanto o isso, o dia cai. Enquanto isso, eu tenho a certeza de que na terça vai ser tudo diferente. 

(Dalila Lemos)

LUZ, CÂMERA, AÇÃO

Parece que a cabeça é um saco e esse saco enche. Aliás, eu nunca tive muita paciência mesmo! Nem com a fé cega ou jornais matutinos, nem com o sono que sinto antes das dez e nem com o calor de meio dia. Já dizia Beckett: “Nem com nem em pensamento”... Quem dirá com falta de atitude!

Me irrita perceber quantas construções já desmoronaram por causa desse comportamento. São casamentos desfeitos, sonhos inatingíveis e planos irrealizáveis que se resumem a um ponto de interrogação. Por quê? Simples! O mundo não para nem enquanto dormimos!

Ao nosso redor tudo se modifica a cada instante. A vida se reinventa por mais que o ciclo se resuma a nascer, crescer, reproduzir e morrer. E se ficamos parados, nada disso faz sentido.

Atitude é um propósito que não sobrevive sem ação. É ridículo desejar que as projeções se concretizem enquanto esperamos acuados. Pior ainda: é péssimo não ter projeções!

Se o meu pensamento tem algum valor, então aja! Porque eu perdoo outras faltas. A do senso, quem sabe... A falta de bom gosto, a falta de dinheiro, ausência de motivação. Entendo a carência de informação e até respeito a escassez de juízo. Mas a falta de atitude atinge o meu limite.

(Dalila Lemos)

FORA DO LUGAR


Às vezes eu tenho a sensação de que está fora do lugar algum objeto, algum pensamento, algum desejo. É como se estivesse faltando alguma coisa dentro de mim. Alguma coisa que não encontro nos trailers, que não assisto nas novelas, que não vejo passar com nenhum carro nas ruas.


Ouço músicas que se transformam em lembranças e voltam a mim em forma de vazio. É como se a única coisa que sobrasse fosse espaço... Um lugar não preenchido, uma nota não tocada.



Tenho a sensação de que o dia fica escuro, o verão fica frio, os ponteiros correm em sentido anti-horário. 



Parece que a vida se resume em esperar por algo que não existe mais.

(Dalila Lemos)

IGUAL

http://riosulnet.globo.com/web/conteudo/7_286188.asp

Entrar no mesmo ônibus. Viajar para o mesmo lugar. Abrir a mesma janela. Olhar a mesma paisagem. Beber o mesmo vinho. Escolher a mesma opção no cardápio... Parece monótono, mas não é.

O que muda as situações é a nossa maneira de enxergá-las e tratá-las. E quando o igual torna-se diferente por conta desses fatores, é sinal de que o tempo passa e de que o mundo muda!

Hoje percebo que tudo em minha volta está em constante mudança, mas, ainda assim, é necessário que eu me permita ao novo e faça do igual diferente.

Não posso me entregar a um pensamento quadrado, a um corpo sem espírito. Não posso permitir que meu papel torne-se secundário nesse grande espetáculo que é a vida. Pra isso, preciso estar aberta a cada ponto capaz de mudar e mover o mundo de forma distinta.

Por isso hoje, vou amar a mesma pessoa de outra forma. Vou deitar na mesma cama e me aconchegar de outro modo. Vou andar pelos mesmos caminhos e chegar a um destino diferente.

(Dalila Lemos)