sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

CONTO COR DE ROSA

Na sala de aula, foi ordenado que cada um da turma escrevesse um conto com final feliz. As histórias poderiam ter personagens clichês como madrastas, sapos, fada madrinha, monstros, entre outros seres obtusos. Materiais de apoio estariam disponíveis para a consulta, a fim de amparar o processo de criação.

Atentamente, a professora observava seus alunos concentrando-se na leitura de livros infantis com histórias inspiradas em narrativas da Walt Disney. Enquanto se submetia a uma análise individual, percebeu que uma de suas alunas não fazia o mesmo que o restante da classe: Laura folheava cuidadosamente uma revista feminina, fixando seu olhar nas páginas onde sexólogas e psicólogas respondiam perguntas de diversas leitoras.

Estranhando os fatos, a professora sentou-se ao lado da menina e a questionou sobre seu comportamento, dizendo não entender o motivo de uma revista servir como base para a criação do conto solicitado. Obteve a resposta de que a idéia principal era a de escrever uma história inteligente e adequada ao mundo atual.

Passaram-se duas horas e o prazo para a entrega dos textos havia esgotado. Enquanto um dilúvio clareava o céu da cidade, os alunos liam seus contos aleatoriamente. No de Bruno, a menina pobre beijou um sapo que se transformou num lindo príncipe. Já no de Clarice, a fada madrinha havia transformado a madrasta em uma empregada para que ela nunca mais incomodasse a princesa.

E logo chegou a vez de Laura. Na sua história, a madrasta mantinha o pai da princesa ocupado todas as noites. Com o pai ocupado, ela saía para tomar uma cervejinha com a fada madrinha. Tomando uma cervejinha, a fada madrinha transformava o lindo e romântico príncipe em uma rã. Transformado em uma rã (e não num sapo) o príncipe serviria como um delicioso tira-gosto. A princesa então iria embora bêbada, chegaria em casa cruzando as pernas, o empregado sarado cuidaria dela, eles passariam a noite juntos e, depois, a fada madrinha o transformaria num indispensável comprimido de engov. No dia seguinte a princesa acordaria super bem e gritaria: VIVA O SÉCULO XXI!

(Dalila Lemos)

O TRUQUE

Abriu a caixa. Tirou tudo de dentro. Fechou a caixa. Colocou tudo sobre a mesa. Ela estava mesmo disposta a fazer isso novamente! O telefone tocou durante cinco minutos sem que Laura Borges, sequer, ouvisse. Só uma coisa tomava conta do seu pensameto: o truque.Qualquer palavra que falasse, qualquer passo em falso que desse seria o fim.

Os riscos deveriam estar de acordo com as estratégias. Nenhum atraso da pessoa que esperava. A campainha tocou, o médico chegara. Laura o convidou para sentar-se na mesa e acendeu seu primeiro cigarro. Durante um trago e outro ela escutava um barulho: era o telefone, insistia em tocar. Apagou o cigarro no cinzeiro e começou a mexer nos objetos que havia tirado da caixa. O médico fazia o mesmo, porém com bastante habilidade. Não havia dúvidas, ele era eficaz, inteligente, rápido.

Os planos de Laura começaram a dar errado, acendeu outro cigarro e tragou com desespero. Estava prestes a ser derrotada, precisava fugir disso, não havia ninguém que ajudasse.O telefone tocou mais uma vez. Quebrou a segunda regra e atendeu. Um simples suspiro fez com que ela soubesse de quem era a ligação. Acendeu outro cigarro, andou de um lado para o outro, mas não desligou. Precisava fazer e tinha que ser agora.

Devagar e em baixo tom as palavras foram saindo de sua boca. Laura suava, não se continha, as frases começaram a se embaralhar e a voz tornara-se trêmida. Finalmente falou: "Bárbara, Bárbara! Se soubesse o quanto me influenciou... Falava em truques como quem fala do ar que respira. Truques, estratégias, macetes. Coisas que fazem de você uma vencedora. Mas eu... Eu não quero mais deixar de ser quem sou por causa de uma disputa mesquinha. Não quero mais agüentar noites em claro, maços e garrafas vazios. Não quero mais jogar!"

Quebrou a terceira regra e desligou o telefone. O médico, a essa altura, já estava em pé ao lado da mesa e olhava distorcido para os cantos da casa. Laura não falou uma palavra, abriu a caixa, guardou o tabuleiro, as fichas, os pinos e o dado. Olhou pra ele com a expressão confusa de quem queria ficar só. Ele se foi.
Na hora de dormir ela pensava sobre lance de dados, fichas sendo entregues, pinos avançando sobre o tabuleiro. Ninguém ganharia nunca!!! Foi melhor assim. Não havia mais jogo. E o truque era esse.

FUTURO DO PRETÉRITO

O mesmo quarto. A mesma parede terracota. São duas e meia da manhã. Às vezes me pergunto há quanto tempo penso nas mesmas coisas enquanto ando pelas ruas. O caminho muda: os carros, as casas, as caras... meus pensamentos não!

Eu continuo imaginando a vida. E recomendaria um mundo mais leve, ingênuo, mais colorido. Um mundo distinto pra todos! Se possível, ainda espalharia overdoses de energia positiva, alastraria sorrisos, divulgaria a crença.

Por mim, as pessoas acreditariam menos nos outros e mais nelas mesmas, tomariam mais banhos de chuva, ouviriam mais músicas, sonhariam mais. Viver seria um excesso de coisas boas! Eu destruiria as armas e preservaria a natureza. Rasgaria o dinheiro e beberia mais água. Extinguiria a saudade. Aproximaria a distância...

Nesse futuro do pretérito, os meus delírios de ontem seriam meus desejos de amanhã. Eu escolheria ser a mesma pessoa quantas vezes fossem necessárias, simplesmente porque o gosto de viver sem saber pra onde (ou pra que) me dá água na boca. Unicamente porque sou diferente e a diferença me faz acreditar que posso pensar o que quiser.

Por fim, eu olharia para o relógio mais algumas vezes. Como um derradeiro que me fizesse entender por que o telefone toca e vocês não atendem, por que alguém grita e vocês não ouvem, por que o fim se aproxima e vocês não se movem.

Em papel passado? O mesmo nexo. Conversas. A mesma ilusão.

(Dalila Lemos)

O ANO COMEÇA NO CARNAVAL

Laura acordou ainda com muito sono, devido ao tenso dia anterior. Tomou um banho quente e demorado. Trocou de roupa três vezes seguida. Engoliu o suco que haviam preparado e partiu rumo ao trabalho.
Chegando no ponto de ônibus um anseio tomou conta de si. Ela queria apenas um lugar para sentar e tentou entrar primeiro que todos os passageiros. Mesmo conseguindo, foi inevitável viajar por uma hora encostando-se a outras pessoas que também estavam em pé.

Por um momento pensou absurdos que lhe rechearam de exaltação. Era uma incoerência enxergar policias e militares sentados em lugares que poderiam deixar as grávidas ou os idosos mais confortáveis. Esse tipo de gente entra pela porta da frente do ônibus, nunca sente o bolso doer com o aumento das passagens e, ainda por cima, consegue atrair atenção de mulheres insanas que não podem ver um fuzil ou uma estampa camuflada.

Guardou sua raiva para as próximas vinte quatro horas, pois não havia dúvida que teria um outro dia sobrecarregado de repetições. Seus amigos falariam a mesma coisa, os convites seriam os mesmos, seus olhos pesariam após o almoço e a chuva da tarde desbotaria a tinta de seu cabelo.

Ouvindo uma de suas preferidas e barulhentas músicas, debruçou-se sobre a roleta e fechou os olhos tentando entender como uma data festiva muda a visão geral do mundo. No carnaval, ninguém se importa de viajar em pé no ônibus tampouco dividir um espaço de 5 m² com mais dez pessoas. Há sempre risadas para os mesmos assuntos. Os convites podem ser iguais que são aceitos infinitas vezes e, até mesmo os uniformes, chegam a ser esquecidos por quem os veste.

Não há briga que faça uma boa letra de samba. Não existe bebida incapaz de aproximar quem não se conhece. O carnaval faz alguém ser dono de si próprio, ainda que essa pessoa queira ser de mais alguém... ou apenas de alguém. E no fim do dia, qualquer segundo vira lembrança.
Uma música mais calma começou a tocar e Laura desceu do ônibus. Chegou ao trabalho com um sorriso tranqüilo no rosto e deu bom dia a todos. Não havia mais raiva nem tensão: faltava apenas um dia para o começo do ano e para o fim de pensamentos pessimistas.

(Dalila Lemos)


JUSTIÇA? MOSTRA SUA CARA

Teoricamente, justiça significa princípio moral que exige conduta justa, com respeito ao direito e à equidade. Na prática, a situação pode se desviar a ângulos assustadores e fazer com que o mundo se perturbe em busca de um novo significado. Não é necessário expor mais de um acontecimento para falar em retidão, visto que a gravidade do ocorrido já cala o que deveria ser justo sem o mínimo esforço.

Atualmente foi publicada uma nota informando que o assaltante Ezequiel Toledo de Lima, após cumprir pena socioeducativa, ganhou liberdade e moradia no exterior. Só para constar, é importante ressaltar que o personagem principal dessa notícia ficou mundialmente conhecido por participar do crime que resultou na morte atroz do menino João Hélio Fernandes, de 6 anos, preso pelo cinto de segurança do carro e arrastado por sete quilômetros na Zona Norte do Rio.

Não bastasse a liberdade, Ezequiel conseguiu por meio de uma organização não-governamental embarcar com a família para um dos países mais desenvolvidos do mundo, com casa e identidade novas para reiniciar sua vida, tendo em vista as ameaças sofridas até mesmo no Instituto João Luiz Alves, na Ilha do Governador.

A polícia prendeu mais quatro assassinos. Diego Nascimento da Silva foi condenado a 44 anos de prisão. Carlos Eduardo Toledo Lima recebeu pena de 45 anos. Os demais, Tiago Abreu de Matos e Carlos Roberto da Silva tiveram reclusão de 39 anos cada um. Apenas Ezequiel, que na época do crime era menor de idade, pôde transformar seu erro em algo que muitos chamam de “sonho”.

Enquanto situações tensas como essa recheiam o país, viram capas de mídia impressas e se candidatam ao sensacionalismo, uma mãe sente a dor da indiferença sem poder ao menos recomeçar sua vida, pois o laço familiar foi desestruturado devido ao comportamento inútil de quem nunca ouviu falar em empatia, tampouco descobriu o gosto de se viver bem.

No momento em que o menino João Hélio era arrastado pelo carro, pedestres avisaram os bandidos e ouviram um deles falar “isso não é uma criança, é um boneco de Judas”. Claramente, Judas fazia um papel diferente... era um menino de seis anos, inocente, que perdeu sua vida tentando cantar para o mundo: “Brasil, mostra sua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim. Brasil, qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Confia em mim”.

Se para você isso é justiça, para mim é pura coincidência.

(Dalila Lemos)