segunda-feira, 31 de março de 2014

SAPATOS DE LAURA

Sapatos de Laura ao lado da cama. Porque ela pode voltar a qualquer hora. Para pisar, firme e insistente, sobre suas últimas gotas de qualquer coisa... Ou somente para desafiar a imensidão do som teatral no chão de madeira. E o que importa! Sapatos limpos, pensamentos sujos. Tão dotados de falta de juízo quanto crianças que insistem em brincar com fogo.

Por um momento poderia ser diferente. Mas os momentos são os mesmos: estão em todas as taças de vinho, e derramam desejo. Impregna de bordô aquele líquido que escorre sobre os conceitos. Invade de êxtase os pesares. E depois pesa. Ainda que sem ressentimento.

E depois pisa. Com os mesmos sapatos intactos que apressaram alguns passos. Com a mesma pressa em que se antecederam alguns diálogos. Pisa como quem marca um lugar no inferno quando já não há mais lugar pra si na alma. Pisa porque tem sapatos, que estarão sempre ao lado da cama, esperando que ela volte.

Mas às vezes, não vem. Quando vem, chega depressa. Mal tenho tempo de trocar os lençóis e mudar os móveis de lugar. Não posso, ao menos, preparar algo para beber. O relógio me abrevia e, quando menos espero, ela já está ao meu lado. Então, somos duas: uma para expulsar e outra para atrair demônios.

E os demônios berram nos meus ouvidos enquanto tento me convencer de que você deveria ter batido à porta, e eu, batido a porta. Mas, tarde agora, já não bastam os gritos: tudo termina em um segredo calado e abafado pelo som daqueles sapatos.

(Dalila Lemos)

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