segunda-feira, 31 de março de 2014

SAPATOS DE LAURA

Sapatos de Laura ao lado da cama. Porque ela pode voltar a qualquer hora. Para pisar, firme e insistente, sobre suas últimas gotas de qualquer coisa... Ou somente para desafiar a imensidão do som teatral no chão de madeira. E o que importa! Sapatos limpos, pensamentos sujos. Tão dotados de falta de juízo quanto crianças que insistem em brincar com fogo.

Por um momento poderia ser diferente. Mas os momentos são os mesmos: estão em todas as taças de vinho, e derramam desejo. Impregna de bordô aquele líquido que escorre sobre os conceitos. Invade de êxtase os pesares. E depois pesa. Ainda que sem ressentimento.

E depois pisa. Com os mesmos sapatos intactos que apressaram alguns passos. Com a mesma pressa em que se antecederam alguns diálogos. Pisa como quem marca um lugar no inferno quando já não há mais lugar pra si na alma. Pisa porque tem sapatos, que estarão sempre ao lado da cama, esperando que ela volte.

Mas às vezes, não vem. Quando vem, chega depressa. Mal tenho tempo de trocar os lençóis e mudar os móveis de lugar. Não posso, ao menos, preparar algo para beber. O relógio me abrevia e, quando menos espero, ela já está ao meu lado. Então, somos duas: uma para expulsar e outra para atrair demônios.

E os demônios berram nos meus ouvidos enquanto tento me convencer de que você deveria ter batido à porta, e eu, batido a porta. Mas, tarde agora, já não bastam os gritos: tudo termina em um segredo calado e abafado pelo som daqueles sapatos.

(Dalila Lemos)

quarta-feira, 19 de março de 2014

VADIA, POR FAVOR!

Poderia falar de mim, mas me nego a matar alguém de tédio.

Fiquemos com os xingamentos:

Piranha, vagabunda, puta... Se revezando num ritmo tão cansativo quanto ao tédio que eu poderia causar se falasse de mim. Portanto, voltemos às ofensas.

Estive pensando que eu poderia ser mais humilhada. Nota 10 para a entonação! Mas o quesito ‘criatividade’ passou longe da média. Se me chamasse de burra, aí sim, ia tocar a ferida.

Alguém que entende o quão degradante é ter sua inteligência minorada, certamente não é burra. E, se não é burra, não quer ser chamada disso nem no último milésimo do segundo tempo.

Agora, convenhamos: PIRANHA?

Estamos no século XXI! As pessoas (digo, grande parte delas) já entenderam que mulher tem um lugarzinho nesse mundo de meu deus. Mulher tem seu lado descrito por Vinícius de Moraes – qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Mas também tem seu lado Nelson Rodrigues, o qual causa uma luta constante por se fazer conviver com o pensamento mais sujo e a cara mais limpa. Uma hora não da certo... E é preciso partir para a sinceridade, como efeito de consideração.

Mas é engraçado. Lidam melhor com a mentira. Parece que a mentira é uma entrelinha indispensável nos textos de autoajuda. Algo do tipo: “se eu não souber o que se passa, vai doer menos. E, se doer menos, eu não vou precisar deixar eco com meus gritos e nem quebrar o que estiver na minha frente”.

Façamos assim: já que a inteligência foi salva pelo gongo, esqueçamos essa importunação de piranha, vagabunda e puta.


Da próxima vez, quero ser chamada de vadia. Vadia é cinematográfico, é poético, é eterno. VADIA É POSER!

segunda-feira, 17 de março de 2014

ARLETE

Me lembro de frases feitas sobre liberdade. Algo do tipo: “Deixo livre as coisas que amo. Se voltarem é porque as conquistei. Se não voltarem é porque nunca as tive”. E, de fato, essas lembranças me incomodam, pois sinto que existe uma distinção tremenda entre amor e liberdade.

O amor está na essência. A liberdade, na necessidade. 

Amor cega. Enlouquece.  Tumultua. Machuca. Causa medo, pânico, aperto no peito, dor no estômago. Tira a fome, o sono, a concentração. Tira você de si e, de si, tudo que poderia estar em você. Causa náusea, mata de ansiedade, acende e apaga, leva e traz os detalhes mais simples e complicados do mundo. Enche de ideias, enfeita de fantasias, transborda de desejo, aporrinha de loucura, esgota de dúvida e desaparece na imensidão do som daquela sua canção preferida a mil decibéis. 

Liberdade não. É simples! Está em cada um e ninguém fica buscando um sentido ou um significado para ela. Ser livre já fala por si.  E todos nós somos! A diferença está na maneira como lidamos com isso.

Há quem opte por apenas um lugar: uma sala, um quarto, um ombro ou até uma gaiola. Há quem prefira viajar, buscar novos horizontes, conhecer novos caminhos e respirar novos ares. O grande lance é que, independente da escolha por uma liberdade sem espaço ou sem limites, o amor existe.

Pessoas livres amam. Pássaros livres também. E, se fogem e não voltam, isso não tem nada a ver com amor. Significa apenas que as paredes de concreto foram quebradas. 

O amor continua ali.

(Dalila Lemos)