Sapatos de Laura ao lado da cama.
Porque ela pode voltar a qualquer hora. Para pisar, firme e insistente, sobre
suas últimas gotas de qualquer coisa... Ou somente para desafiar a imensidão do
som teatral no chão de madeira. E o que importa! Sapatos limpos, pensamentos
sujos. Tão dotados de falta de juízo quanto crianças que insistem em brincar
com fogo.
Por um momento poderia ser
diferente. Mas os momentos são os mesmos: estão em todas as taças de vinho, e
derramam desejo. Impregna de bordô aquele líquido que escorre sobre os
conceitos. Invade de êxtase os pesares. E depois pesa. Ainda que sem
ressentimento.
E depois pisa. Com os mesmos
sapatos intactos que apressaram alguns passos. Com a mesma pressa em que se
antecederam alguns diálogos. Pisa como quem marca um lugar no inferno quando já
não há mais lugar pra si na alma. Pisa porque tem sapatos, que estarão sempre
ao lado da cama, esperando que ela volte.
Mas às vezes, não vem. Quando
vem, chega depressa. Mal tenho tempo de trocar os lençóis e mudar os móveis de
lugar. Não posso, ao menos, preparar algo para beber. O relógio me abrevia e,
quando menos espero, ela já está ao meu lado. Então, somos duas: uma para
expulsar e outra para atrair demônios.
E os demônios berram nos meus ouvidos enquanto tento me
convencer de que você deveria ter batido à porta, e eu, batido a porta. Mas,
tarde agora, já não bastam os gritos: tudo termina em um segredo calado e
abafado pelo som daqueles sapatos.
(Dalila Lemos)