sábado, 28 de janeiro de 2012

JIBOIAR É O QUE ME RESTA

Gosto de aprender coisas. É certo que, até hoje, não aprendi a segurar minha língua durante situações inoportunas. Também não aprendi nenhuma técnica que me torne menos transparente. Mas tudo bem: de falsidade eu não morro! Agora vamos ao que interessa.

Ontem me ensinaram um verbo cujo qual nunca fez parte da minha vida: jiboiar. Achei estranho quando, imediatamente, pensei em uma cobra. E que curioso! Não me enganei! A palavra foi inventada para comparar o processo alimentar de uma jiboia ao momento de autorreflexão.

A jiboia é uma serpente comprida, com a boca muito dilatável, que se alimenta de pequenos mamíferos. Ela não mastiga as presas, apenas as sufoca até a morte e as engole. Obviamente, digerir um animal inteiro é uma tarefa difícil que pode levar dias ou até semanas. Isso explica o termo que minha amiga inventou.

Algumas vezes, a vida nos traz presas em forma de notícias. Para sobreviver, somos obrigados a engolir os fatos de uma só vez, sem mastigá-los. Em um primeiro momento, as notícias passam por nossa garganta de modo desagradável e nos deixa entalados. Aos poucos, os acontecimentos desintegram em nosso organismo até que o processo digestivo termine.

Jiboiar é isso: digerir lentamente uma dor, engolir de uma só vez o sofrimento até que ele se decomponha dentro de nós.

Somos parecidos com as serpentes. A diferença é que o alimento que nos faz sobreviver, também nos faz chorar. Sentimos muito por engolir o amor errado, a perda, o dia ruim, o estresse do trabalho.

Agora, por exemplo, eu sinto por digerir duzentos batimentos cardíacos por minuto. E se alguém perguntar o que está acontecendo, é uma boa hora para responder: “estou apenas jiboiando”.

(Dalila Lemos)

SOBRE UM OLHAR


Não se faz mais canções como antigamente! Posso dizer isso ao ouvir "O bêbado e a equilibrista" - uma composição de João Bosco. Perfeição é a palavra que descreve a interpretação de Elis Regina e genial é o adjetivo que escolho para a letra da música. Vejam só:

Caía a tarde feito um viaduto

E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel

Pedia a cada estrela fria um brilho de a...lu...guel

E nuvens lá no mata-borrão do céu

Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco

O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil

Prá noite do Bra...sil, meu Brasil

Que sonha com a volta do irmão do Henfil

Com tanta gente que partiu num rabo de foguete

Chora a nossa pátria mãe gentil

Choram marias e clarisses no solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente

A espe...rança dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha pode se ma...chu...car

Azar, a esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

tem que continuar


O bêbado representa os artistas que resistiam ao Governo e lutavam pela liberdade. A equilibrista ilustra a esperança de democracia contida num projeto de abertura política gradual.

Na década de 70, um viaduto de Belo Horizonte desabou sobre carros e ônibus. Várias pessoas morreram e nada foi noticiado. A primeira frase da música esclarece tal acontecimento.

O luto está associado ao desaparecimento de militantes de esquerda, assassinados sob tortura. Carlitos é o personagem mais famoso de Charlies Chaplin: um andarilho, sem dinheiro no bolso, que veste um paletó apertado, usa chapéu-coco e bengala.

Mata-borrão é um objeto utilizado para absorver o excesso de tinta do texto escrito com pena ou caneta tinteiro. No contexto, significa um meio de neutralizar as manchas da tortura.

Henfil foi um cartunista, escritor e jornalista brasileiro considerado um despótico inimigo da ditadura e do falso moralismo brasileiro. O irmão dele, Betinho, foi um sociólogo à frente da AP (Ação Popular) que partiu para o exílio em 1971.

Rabo de foguete é uma expressão usada para representar situações de perigo. Ou seja: aqueles que se manifestavam contra as formas de coação, colocavam as vidas em risco e eram obrigados a se exilar.

A mãe do Henfil chamava-se Maria. Clarice era a esposa do Vladimir Herzog - jornalista assassinado durante o regime militar. Marias e Clarices, no plural, representam as mães, irmãs e mulheres que trocaram as vidas pelo ideal da liberdade e da expressão.

A esperança é a expectativa de ver o Brasil livre e a corda bamba de sombrinha é o obstáculo político. A cada passo dessa linha, desse desejo, o sonhador pode se ferir. Azar: que se machuquem! Pois o show de todo artista tem que continuar!

Lindo, não?!? Música pode ser apenas música, mas um olhar é sempre mais que isso. Aliás, o olhar é sempre mais que tudo: é o que faz a diferença, o que muda, move e fica.

(Dalila Lemos)

NOVOS DIAS PRA RECOMEÇAR

Há vinte e três anos é o que vejo: um novo ano se aproxima e tudo fica cheio. O cérebro enche de planos, a agenda lota de compromissos, as orações transbordam promessas e os pensamentos acumulam novidades. Até a academia enche!

É estranho pra mim. Não quero ser um sujeito importuno, mas prefiro analisar o que acontece ao meu redor a me trancar num quarto, cruzar os dedos e sussurrar: "ano novo, vida nova!".

Acredito no novo, pois acredito no mundo. E o mundo se transforma a todo momento! É por isso que eu não considero adequadas as mudanças planejadas só para um determinada época, mas no geral é assim.

O dia trinta e um de dezembro é dominado pela fala. Alguns dizem que vão cuidar mais do espírito, outros dizem que vão dar mais atenção ao corpo. Alguns afirmam que vão comprar mais, outros contam que vão gastar menos. Em segredo, há quem diga que vai conquistar um novo amor. Aos berros, há quem jure reconquistar um amor antigo. Assim, entre juras, confidências e afirmações, o dia se enche de palavras.

O que parece certo, torna-se questionável: afinal, até quando essas palavras são levadas a sério? Um mês. Dois. Quem sabe três! Depois disso, já não custa esperar o réveillon.

Para mim, não importa a época! É melhor que não exista data para pensar, planejar, agir, concluir. É melhor que não exista, pois o tempo não deixa de ser tempo só porque mudou o ano.

É por isso que eu ainda espero que as pessoas apostem mais em si mesmas. Espero que todos se surpreendam com os acontecimentos e façam acontecer porque tem de ser feito, não apenas pela mudança de uma nova era.

(Dalila Lemos)

CÃES, ESCOLHAS E SERES HUMANOS

Às vezes, quando parece que o mundo vai acabar, ela chega. Sempre carente, mas alegre. Sempre festiva, embora quieta. Me olha com um olhar de quem esperou por mim o dia todo, como se nada mais importasse. Depois, deita no chão e me pede carinho.

"Ela" é a Bebel, minha cachorra. É tão adorável quanto os outros cães, mas há algo diferente que a deixa mais especial: ela me faz sentir especial, até nos piores momentos. Sinto um amor que não cura outros amores, porém ameniza.

Prefiro os bichos aos seres humanos, pois as pessoas nos substituem e eles nunca. Humanos são feitos de uma matéria ruim: sentem inveja, indiferença, pudor. Pessoas são pessoas e só. Se limitam aos erros, dão mais importância ao cérebro que ao coração. Acho que isso explica meu amor pelos animais. Mas eu não quero falar dos caninos de um modo geral. Quero contar sobre escolhas.

Escolhas podem ser involuntárias ou não. Podem ser certas ou erradas. Podem ser para a vida toda ou apenas para um momento único. O fato é que as decisões às vezes machucam a gente e fazem doer quando apostamos em algo sem perceber que é em vão.

Hoje vejo que me machuquei com uma de minhas decisões. E, pra piorar, me apeguei tanto a ela que não me sinto capaz de substituí-la por outra. Em contratempo, outra decisão que tomei em minha vida nunca se fez negativa.

Lembro-me como se fosse ontem: ela estava na rua, perdida. Chamei por ela - que me olhou com um olho de cada cor e deitou no meu colo. Levei a Bebel pra casa. E agora, enquanto as orelhas dela se enfiam nessas entrelinhas, eu me sinto capaz de perceber que as melhores escolhas são aquelas que nos escolhem.

(Dalila Lemos)