quarta-feira, 13 de julho de 2011

ZONA URBANA

Vinte minutos de espera e lá vem ele, milagrosamente no horário. Estaciona próximo ao meio fio e abre as portas da decepção. Eu profetizo o futuro e vejo a catástrofe: alguém vai morrer em troca de uma poltrona! Quase acerto.


Entre um empurrão e outro, alguns pensamentos pairam no ar. Acho que realmente poderiam inventar uma cabine Spielberg Transportation, afinal, estou cheia de dividir minha rotina com vendedores de cabides e andarilhos. Sem contar os bancários, comerciantes, estudantes, turistas, policiais, idosos, deficientes, gestantes, bêbados, ciganos, enfim. É muita gente para pouco espaço! Um compartimento para me transportar rapidamente de uma cidade a outra é a ideia mais eficaz da semana.

Agora deixo os pensamentos mirabolantes de lado, pois há algo mais contundente para minha indignação: o rapaz sentado à frente, mas conhecido como “ném”, é doutor em inconveniência. Formado em Harvard, ele sabe melhor que ninguém o significado de barulho. Ouve música no último volume de seu MP3 e não utiliza fones de ouvido. E vale lembrar: é o criador da comunidade virtual “eu tenho mau gosto” – um infeliz apreciador do proibidão do funk.

Logo atrás, uma cena clássica: o ceguinho e sua bengala. Ele caminha com seu bastão na mão direita enquanto, com a outra mão, segura uma cesta de palha. Recolhe moedas, notas, tickets e vales, enquanto sua mulher se esconde em um canto qualquer fingindo não o conhecer.

Ao meu lado, um episódio de terror: a boca sem dente e sem dentadura, aberta com a ajuda de um ronco horripilante. Hora ou outra, a cabeça encosta-se ao meu ombro e me empurra contra a janela. Neste momento, tento me lembrar se algum dia eu grudei chiclete na cruz para merecer isto. Dona fulana acorda assustada e me pede desculpas. Após cinco segundos volta a roncar.

Olho para o relógio enquanto bebês choram e amigos se comunicam à distância. Faltam quinze minutos para o fim da tragédia. Perco um terço deste tempo ao explicar a alguém qual tinta de cabelo uso. E quando penso que nada mais pode piorar, uma senhora apresenta documento de identidade, ignora a roleta e para na minha direção. Cedo meu lugar a ela e a escuto perguntar: “- Andar de ônibus é tão gostoso, não é?”. Sem pensar duas vezes, eu respondo: “- Você não faz ideia!”.



(Dalila Lemos)

RESÍDUOS


A solidão de quem fica

O vazio de quem ama

Quando a noite é infinita

E o frio arde em chamas.

Se no papel um rabisco

Na voz, uma canção

Se no destino uma linha

Na vida, uma ilusão.

Rasgam-se as cartas

Secam-se as lágrimas

O que sobra já é nada

Um ponto. Um traço. Uma tração.

E neste giro sem órbita

Nesta porta que nunca abre

Bate só

Só o coração!

(Dalila Lemos)

DEZ PASSOS PARA O CANSAÇO

Primeiro: brigar com o despertador e com o sono. Malditos que não se entendem nunca! Quando o alarme toca, o sonho sempre está na melhor parte.

Segundo: cozinhar pratos específicos. Nada de frutas ácidas, café, chocolate, chá preto, bebidas gasosas, sucos cítricos e outras frescuras. É preciso arrumar vários potes de comida para levar ao trabalho, ainda mais com a obrigação de comer mais vezes ao dia. E tudo isso só por causa de um refluxo!

Terceiro: Tomar banho apressadamente, pois os dez minutos reservados ao chuveiro foram gastos na tentativa de descobrir se kiwi é ou não uma fruta ácida.

Quarto: vestir uma cinta demasiadamente apertada para que a postura fique adequada ao sentar. Que decisão difícil: ou sua coluna fica reta ou você respira.

Quinto: escolher a primeira roupa que os olhos avistarem ao abrir o armário e calçar aquele tênis que é confortável, embora viva com o cadarço desamarrado.

Sexto: gastar toda a energia para ser a primeira a entrar no ônibus e viajar sentada.

Sétimo: contar as horas para o expediente de trabalho acabar. Isso inclui abrir trinta e-mails, responder vinte, mover três e excluir sete.

Oitavo: ir ao ginecologista e morrer (de tédio) na fila de espera. Com certeza os médicos especializados em “periquitas” possuem um contato de permuta com a revista Caras. Eles atrasam a consulta (propositalmente) por uma hora. Enquanto isso, as pacientes (já impacientes) folheiam cerca de quatro a cinco edições da revista.

Nono: quebrar a unha no famoso “sabugo” antes de descobrir que o professor não vai dar aula.

Décimo: esperar o namorado/marido (lê-se “namorido”) retornar do serviço e contar a ele tudo o que foi escrito agora.

(Dalila Lemos)