quinta-feira, 4 de outubro de 2018

NO ESCURO

A lâmpada queimou. E no escuro eu comecei a pensar no exagero de me resumir às roupas espalhadas pelo colchão. Estava tarde. Eu podia sentir o frescor do vento, talvez três ou quatro horas da madrugada, e uma melodia rude, lenta, martelando no tímpano. Eu precisava sair dali. Mas eu não queria, e logo ficaria claro, a luz da manhã traria uma falsa sensação de conforto e teria o barulho dos carros, dos pássaros, quem sabe de algumas crianças lutando contra a responsabilidade de ir à escola para se tornar sei lá o quê. A gente nunca sabe - nem do outro, nem da gente.

Eu não fazia ideia de nada, nem de quantas horas passavam enquanto eu pensava nisso tudo, por tantas vezes repetidas em toda minha vida. Não sabia do tempo. Abri uma garrafa de vinho, segurei a taça em frente ao espelho, sem me reconhecer no entanto. Vi o reflexo de alguém que já não habitava o meu corpo. A pele pálida, maquiagem borrada e o rosto inchado, revelando um estado de autocrítica imensurável por todos os sinais ignorados no mundo. Quantos segundos? Pensei. Talvez o suficiente pra cobrir o vazio com alguns panos que ficaram pra trás, sem pausa, no meio do caminho.

Havia muito espaço entre uma coisa e outra que se transformava dentro de mim. Tantos discos e filmes e roupas e cenas. Tanta gente! E grito e eco e os nós desatados com o movimento dos ponteiros. Eu sentia medo a cada gole, mas já não conseguia voltar atrás. Não me lembrava o modo. Não me identificava entre os traços embaçados, tragos de cigarro, os lábios roxos e o estômago embrulhado de lembranças. E aquele som, hostil, fazendo cada vez mais barulho, enaltecendo a manhã que se aproximava não de mim, mas de tudo que havia em mim.

No momento em que senti a garganta seca, mesmo já na quarta taça, comecei a ter uma vaga ideia do que ficou incompleto. E era muito. Podia rasgar lírios nos meus textos, papéis velhos, aquilo tudo que eu me esquecia o nome e que transbordava. O celular tocava e eu deixava. Batiam a minha porta e eu deixava. Eu deixava os verbos sem conjugação, deixava ir, me deixava aos poucos. Eu era menos do que podia ser, mas estava além de onde podia estar. Talvez sentisse apenas sono, mas era preciso estratégia: um grande esforço para comprimir as pupilas, desacelerar os batimentos e perder as contas de quantas vezes foi necessário fazer de conta, porque a realidade dói. E foi então que tudo ficou claro. Ainda que com o sol ultrapassando a cortina, me cegando, fazendo com que eu implorasse por mais um pouco - Só mais um pouco! Adormecer não bastava para os sonhos que eu construía com os olhos entreabertos.

(Dalila Lemos)